Continuo "pour Amelie"; um amigo leitor mais céptico da vida diz que "isso passa", e terá razão, mas o facto é que ainda não passou... Contudo mantenho-me minimamente atento aos dramas do universo, inclusive estes aqui ao pé da porta, pois é impossível não tropeçar neles!
Nestes dois últimos dia assisti a situações televisivas que me deixaram os cabelos em pé e cujos sinais não posso, de maneira nenhuma, ignorar. Há uma mudança de tom - ou melhor, de escala - na choradeira nacional, que só não prenuncia o pior porque a integração europeia não o permitirá. Da crítica aos políticos está a passar-se para a desilusão com o sistema. E da denúncia da bandalheira e roubalheira vai-se para o ataque ao regime.
Rapidamente, as situações. No "Prós e Contras" desta segunda-feira, 21, o tema era "Novo ministro no Governo e as candidaturas à Câmara de Lisboa; o olhar da sociedade sobre a política e os políticos." E a pergunta: "Para onde vai este país?" Paulo Varela Gomes, um historiador de que nunca tínhamos ouvido falar, e que parece ter feito ondas com um artigo sobre Lisboa no "Público" fez um ataque frontal ao regime e declarou que o melhor presidente da C.M.L. foi o Duarte Pacheco. Até mesmo Carlos Abreu Amorim, que nos habituou a comentários pertinentes e claros, não se conteve em deitar abaixo o sistema. Rui Godinho esteve anódino e apenas Proença de Carvalho fez uma ténue defesa da III República, sem deixar de concordar com o panegírico do Estado Novo implícito - explícito - nos comentários de Varela Gomes. Na assistência, o comerciante José Carlos Gomes falou com saudade nas décadas da eficência e do respeito. E houve aplausos para esta lavagem descarada do tempo da outra senhora, e projecção de lama na mulher de 33 anos que agora todos acham uma grande galdéria.
Na terça, no "Choque Ideológico", não houve choque nenhum. Viriato Soromenho, supostamente pela esquerda, não desdisse e até concordou com Rui Ramos, cujo sarcasmo arrogante ("os partidos de esquerda, que por muito menos já queriam trazer para a rua as Chaimites e os cravos") ainda evidencia mais o seu reaccionarismo pomposo.
Vamos lá por partes. A crítica aberta, contundente e até excessiva, é uma grande força da democracia e um dos seus aspectos mais exaltantes. É bom, é excelente, que nos canais públicos apareçam pessoas a criticar este estado de coisas surrealista a que chegamos. Mas não se pode perder de vista que a situação, por pior que seja, não é comparável à situação anterior. E que a situação anterior, por mais méritos que tenha tido, era pesadíssima para os portugueses e ignorava os avanços da sociedade contemporânea. E também, é bom lembrar, havia corrupção, incompetência e bandalheira. Se o grau era maior ou menor, que venha o diabo e decida. Nestes valores, como em todos os valores morais, não há mais nem menos; ou se tem, ou não se tem. E o discurso oprobo e moralista de então mal escondia a corrupção e a imoralidade.
Agora, pelo menos, pode-se criticar. Não serve de muito, é verdade. Mas abre a possibilidade de que algures, alguém seja punido. Ou pelo menos que não o elejam. Os ramos e portas, que andavam de fraldas no antigamente, não sabem o que era a miséria, o obscurantismo, a incultura, a guerra, a moralidade imposta, a tristeza lúgubre.
A questão não é o sistema: não é o sistema que é mau, são as pessoas. O sistema anterior também era mau, porque eram as mesmas moscas. Ou seja, cada povo tem o governo que merece. Uma malta que enche estádios mas que não sai à rua para nem quando a roubam e injuriam, é porque não se importa de ser roubada e injuriada.
O melhor mesmo é ficar no "pour Amélie". Já viram o João Tabarra na zdb? Ou, para os mais clássicos, o Columbano no Museu do Chiado? Pelo menos têm comido croquetes da Versailles? A luxúria, a estética e a culinária continuam a ser a maior desforra, para quem não tem sangue para se proteger dos patifes.