Com tantos problemas prementes a chatear toda a gente, agora levanta-se a questão do problema premente duma minoria de gente.
As posições dum lado e do outro são radicais e coincidem com as posições em relação à interrupção da gravidez. Os católicos e os conservadores em geral (não são sinónimos?) são contra uma e outra coisa, e os ateus, agnósticos e liberais em geral são a favor das duas.
Os conservadores, não querendo utilizar os seus argumentos reais, que são logo ridicularizados como antiquados e fora do mundo actual, entrincheiram-se na questão do referendo. Isto porque sabem que num referendo a probabilidade de ganhar é enorme. A maioria da população não vê com bons olhos que alterem o “seu” casamento e é homofóbica. Compreende-se a sua posição emocional, mas de facto não têm razão.
Vamos por partes.
Do ponto de vista da legitimidade de decidir na Assembleia, ou seja, da legitimidade da Assembleia tomar tal decisão, não me parece que haja dúvidas. A Assembleia pode fazer leis, e para isso foi mandatada pelo voto. A maioria da Assembleia (PS, BE e PCP), que representa a maioria da população, tem poderes para tal. Quando as pessoas votaram sabiam que o casamento entre pessoas do mesmo sexo estava nos programas destes partidos.
Quanto à questão ética, que é a mais importante, há diferenças que justificavam um referendo em relação à interrupção da gravidez e não justificam um referendo em relação ao casamento homossexual.
A interrupção da gravidez tem a ver com o conceito de vida e do direito à morte. A maioria das religiões opõe-se à liberdade do indivíduo decidir sobre a morte (dele próprio e dos outros) e considera que é um assassinato, portanto um crime que não pode ser sancionado pelo Estado. No caso do assassinato, como no roubo, não se pode dizer que quem é contra não o cometa, porque o comete contra outro. Isto exigia um referendo.
Agora, o casamento entre pessoas do mesmo sexo só as afecta a elas e não há terceiros envolvidos. Portanto pode dizer-se que quem é contra não o pratique. É apenas um direito duma minoria, e como tal deve ser defendido pela Assembleia, assim como defende outros tipos de descriminação. Certamente que a maioria da população é contra, mas não tem nada com isso.
Claro que logo a seguir se levanta a questão da adopção de filhos por casais homossexuais. Quando o casamento se tornar legal, o problema vai levantar-se imediatamente. Só de pensar nisso, os conservadores ficam de pelo eriçado. A última decadência. E o último argumento.
Faz-lhes confusão as crianças serem educadas por homossexuais. Mas não lhes faz confusão as crianças serem educadas por casais disfuncionais, desavindos, litigiosos, violentos, etc. Nem lhes faz confusão as crianças serem educadas em reformatórios, asilos e abrigos. Não é possível dizer à priori se um casal homossexual educa melhor ou pior do que um heterossexual, ou uma mãe solteira, ou um pai sozinho. Fica exposta a “valores errados”? Basta ler o histórico dos heterossexuais em relação às crianças (qualquer Correio da Manhã, em qualquer dia) para se perceber quantas crianças são expostas constantemente a violências, abandono, violações, descaso, etc. Cada caso é um caso e não há generalizações.
Mas, entretanto, juridicamente o caso nem se coloca,. A lei já diz que uma criança pode ser adoptada por um adulto sozinho, ou por um casal. No primeiro caso, o homossexual só tem de dizer que é sozinho para se poder candidatar. No segundo, sendo o casamento heterossexual aprovado por lei, a lei não diz que tipo de casal, portanto os gays e as lésbicas ficam automaticamente incluídos.
Há uma coisa que sempre me deixou perplexo: porque é que os conservadores querem obrigar os outros a agir segundo os seus padrões? Os liberais não os impedem de continuarem a ser como querem. Quem quiser viver segundo os preceitos da Santa Madre Igreja (ou de qualquer outra proposta de vida) está à vontade.
Mas o facto é que não está; fica agressivo por o vizinho não seguir os mesmos ditames. Agora já não têm força para o fazer, mas tempos houve em que queimavam na fogueira quem não pensasse da mesma maneira.
Ora, vão-se lixar!
(Declaração de interesses: sou heterossexual convicto e tive uma educação católica completa.)