Sexta-feira, 20 de Março de 2009

A década de 1980

 Foi uma década em que eu não estive em Portugal (fiz uma visita rápida, turista apressado, em 86). Mas aconteceu muita coisa - ó se aconteceu. Contaram-me, mas ninguém me contou tanto e tão bem como Manuel Dias Coelho num artigo do Público. Aqui vai, com a devida autorização do meu amigo. É claro que com o Manel tudo adquire um ritmo frenético e uma áurea estelar, mas é precisamente o que está a faltar nesta época de tristezas!

 

 

Quando eu pensava que os Duran Duran tinham desaparecido de uma vez por todas, fui surpreendido com a notícia do lançamento, na segunda semana do próximo mês, do mais recente álbum da banda, Red Carpet Massacre, com o contributo de Timbaland. Não sou admirador da banda de Simon le Bon, mas reconheço que ela contribuiu para a imagem de renovação e de glamour kitsch que tenho dos anos 80. Nessa década marcada, no plano nacional, por recessões económicas, crises políticas, conflitos laborais e sindicais, emergia em paralelo um optimismo pouco comum na nossa maneira de ser, uma mudança no modo de pensar e de agir, uma (r)evolução nas artes, a descoberta do prazer de viajar para o estrangeiro e, pela primeira vez, o espoletar de um cosmopolitismo que cortava definitivamente com as amarras que nos prendiam a séculos de uma existência provinciana, ostracizante e bafienta. A irrupção de uma internacionalização era sentida em Lisboa, onde tudo acontecia, e, nela, no eixo Chiado/Bairro Alto. Era inegável o contágio da movida madrilena, que se espalhava por outras cidades do país vizinho. Nós olhávamos para Espanha com os olhos esbugalhados, privados de um contacto com outras capitais que ditavam as leis da modernidade, como Paris, Londres ou Nova Iorque.

Se não contarmos com a alegria colectiva que foi saborear a vida democrática, creio que o que entendendo por joie de vivre foi sentida por nós de uma forma única nos anos 80. O Bairro Alto era o palco da movida lisboeta, com os novos restaurantes, bares, galerias e lojas. Estava apagada a imagem de marginalidade e de pobreza alicerçada no tempo em que por lá proliferavam tabernas e bordéis. O Bairro era a noite de Lisboa por excelência e onde se perdiam as diferentes tribos dos “políticos”, “intelectuais”, “modernos”, “alternativos”, “betos”, “cosmopolitas” e “gays”. Só os “betos” não frequentavam o Bairro, felizmente. Ficavam-se pelas entediantes Avenida de Roma e Praça de Londres, por lugares de encontro serôdios como as pastelarias Mexicana e Roma, ou por discotecas como a Whispers e afins, se a memória não me falha.

O Bairro Alto começava a agitar-se pelas oito e meia da noite e tudo se dava por terminado pelas três ou quatro da manhã. Chegarmos a casa às quatro era “uma grande noitada”, às cinco ou seis “uma loucura”, e a partir daí “uma coisa inimaginável”. Hoje, entre a meia-noite e as duas e meia estamos na “terra de ninguém” e é impensável haver uma verdadeira agitação antes das quatro ou cinco da madrugada. A idade de quem frequentava o Bairro oscilava entre os 25 e os 55 anos, enquanto na actualidade deve manter-se nos 16/26. Convivia-se dentro de restaurantes, bares e discotecas, enquanto que o espaço de convívio, agora, é a rua. Os graffities não tinham ocupado as paredes de todos os prédios (lembro-me de, nos anos 80, haver um jovem que assinava, salvo o erro, por Grafitó, e que imprimia a sua marca em pequenos graffities pretos como aquele do homem e da mulher que se assemelhavam ao par romântico do filme Casablanca, com o dístico ‘Fim-de-semana na cidade, miséria em bando’). O lixo não se acumulava pelas ruas, não se vendia drogas impune e descaradamente, e não havia sentimento de insegurança. A Rua das Salgadeiras, então conhecida e fotografada pela grande buganvília, que ainda resiste, e pelo velho cadillac preto estacionado na convergência com a Rua da Barroca, é hoje o estaleiro eterno de obras e um urinol público a céu aberto.

Quem queria viver a noite no Bairro marcava encontro entre as oito e as nove na “Brasileira do Chiado”. Nos Verões escaldantes de então, a esplanada do mais carismático café da capital ficava repleta de gente aperaltada e não, como agora, cheia de turistas orientados pelo Guide du Routier. Uma “nuvem” de perfume parecia envolver a zona. Ao contrário do que hoje acontece, as pessoas apresentavam-se no seu melhor: irrepreensivelmente vestidas e calçadas, imaculadamente penteadas e maquilhadas, no caso das senhoras, e perfumadas com excesso com as fragrâncias bem intensas do momento. Era um sacrilégio não cuidar da imagem pessoal, seguindo os ditames da Moda. Hoje, longe desse tempo, penso que eram um tanto ou quanto ridículos certos diktats. O consumo de moda não estava ainda democratizado e massificado e os portugueses não tinham despertado para o culto das marcas. Elogiava-se a uma mulher um bonito vestido e queria saber-se onde o tinha comprado. Agora, pergunta-se de que marca é e quanto custa. As silhuetas também mudaram. Os casacos curtos com os ombros muito chumaçados, conjugados com roupas cingidas ao corpo, faziam desequilibrar as linhas do corpo, sobretudo as femininas, os sapatos tinham saltos demasiadamente altos, os jumping suits, ou fatos-macaco para senhora, inspirados na versão original de Thierry Mugler, davam um ar mecanizado, as calças drapeadas faziam lembrar os cortinados do cinema Condes. Desnudava-se um dos ombros, abusava-se dos fechos de correr, apertava-se a cintura até ao desespero. Os homens abriam os botões das camisas quase até ao ventre, exibindo os pêlos da masculinidade. Sorviam-se as criações de Gaultier, Montana, Mugler, Kenzo ou Myake. Via-se que um novo estilo emergia com Armani. Imperavam as cores vibrantes, os dourados, os metalizados e os acessórios excessivos. Havia uma regra inviolável: todos tinham de transmitir um aspecto cuidado ao pormenor. Chegou-se ao ponto de as calças de ganga serem vincadas. Na roupa não se exibia uma prega involuntária e no cabelo era crime mostrar desleixo. Os homens usavam bigode (e não se depilavam). Todos os ídolos ou símbolos sexuais masculinos o tinham, de Mark Spitz, a Burt Rynolds, passando por Robert Redford. Nos rostos femininos sobressaía a maquilhagem em tons de rosa forte nas sombras, blushs e bâtons, como se fossem inspiradas em fotografias de moda de Guy Bourdin. Os cabelos tinham poupas e ondas, inspirados em cortes como os que se viam nos video clips de Duran Duran, Classic Noveaux ou Climie Fisher.

Não sou um apreciador da moda dos anos 80 que, para mim, consubstancia a mistura “caricatural” do glamour e do kitsch. Se tiver de eleger o melhor da moda desses anos aponto os penteados, a maquilhagem e o guarda-roupa (criado por Yves Saint Laurent) de Catherine Deneuve no filme Fome de Viver/The Hunger, e as figuras de Brian Ferry, David Bowie e do baterista dos Rolling Stones, Charlie Watts, ainda hoje referências de elegância no masculino. Numa época de excessos e de gostos duvidosos, havia mulheres que se mantinham num mundo à parte: Bianca Jagger, Nan Kempner, Lee Radziwill, Audrey Hepburn, Catherine Deneuve, Marisa Berenson, Marianne Faithfull e Charlotte Rampling. Por cá, entre as senhoras, destacavam-se a elegância intemporal de Greta Statter (representante do gabinete internacional de tendências Promostyl), a modernidade discreta de Manuela Gonçalves, o vanguardismo quase agressivo de Ana Salazar, a sobriedade nobre de Snu Abecassis, a irreverência cuidada de Anamar, a classe inquestionável de Madalena Fragoso, o magnetismo irresistível de Vera Lagoa, o chique natural de Maria do Céu Avelar (então primeira directora de Beleza da Máxima). Nos homens, recordo o estilo refinado e contido, que ainda perdura, de Manuel Alves, da dupla de criadores Alves/Gonçalves, de Manuel Reis, do Frágil e do Lux, e de José Luís Barbosa, da Arquitectónica e da Interna Empório Casa. Havia também quem seguisse a Moda com garbo e irreverência, fiel ao l’air du temps, como a produtora de moda Susana Marques Pinto que saía à noite de estola, chapéu, saltos muito altos e diferentes cabeleiras postiças, influencias da sua vida em Londres.

Foi também na década de 80, mais precisamente em 1988, que surgiram as primeiras revistas femininas de qualidade que continham páginas e páginas de produções de moda: a Máxima, a Elle e a Marie Claire. Havia todo um universo a explorar. Estas revistas contribuíram para a divulgação de novos talentos nos domínios da criação, da fotografia e das produções de moda, bem como de modelos e de outros profissionais ligados ao sector, designadamente maquilhadores e cabeleireiros. A Moda já ganhava estatuto em Portugal, com Ana Salazar na linha da frente, e também com os talentos de Manuel Alves e José Manuel Gonçalves, Mário Matos Ribeiro e Eduarda Abbondanza, José António Tenente, Helena Redondo, Manuela Gonçalves, António Augustus, Karen Ritter, Helena Kendall, José Carlos, Zignio e Paulo Matos. Quem queria andar no último grito comprava em lojas que eram referência na capital, tais como a Maçã, de Ana Salazar, a Loja Branca, de Manuela Gonçalves, a Battaglia, a Loja das Meias, a Charlot, a Ayer, a Cravo e Canela, os Porfírios Contraste, a Casa Africana... As grandes marcas de Cosmética começavam a conquistar o mercado português e os novos perfumes para homem e senhora eram lançados com uma frequência nunca vista.

Há vinte anos, as agências de modelos eram embrionárias. O norte-americano Bryan fazia carreira com uma escola para a formação de modelos onde ensinava a desfilar. Duas modelos faziam furor: Dalila Martins e Yolanda. Esta última, que era a secretária do então presidente da Assembleia da República, Teófilo Carvalho dos Santos, provoca um pequeno tumulto sempre que entrava no hemiciclo para entregar algum documento ao presidente. Modelos como João Carlos e Tó e Mi Romano ombreavam com os melhores no estrangeiro. Manuel Alves entrou no mundo da moda como modelo e transformar-se-ia num dos mais conceituados criadores nacionais.

Havia dois lugares incontornáveis para quem se regia pelo princípio do one must see, one must bee seen, e que eram o Pap’Açorda e o Frágil, que hoje têm equivalência, respectivamente, no Bica do Sapato e no Lux. Era comum verem-se no Bairro Alto políticos como Mário Soares ou Francisco de Sá Carneiro, jornalistas como Maria João Avillez ou Miguel Esteves Cardoso, artistas plásticos como Pedro Cabrita Reis ou Pedro Croft, músicos como Amália Rodrigues ou António Variações, coreógrafos como Olga Roriz ou Louis Falco, actores como Maria de Medeiros ou Martin Sheen, criadores de moda como Ana Salazar ou Jean Paul Gaultier, gente do bel-canto ou do bailado clássico como Ileana Cotrubas ou Mikhail Barishnikov.

Os restaurantes mais procurados estavam sempre a abarrotar de gente, como o Bota Alta, o Alfaia, o Fidalgo, o 1º de Maio, o A Primavera, o Atalaia, o Pap’Açorda, o Pile ou Face, o Casanostra, o Páginas Tantas, o Mais Possível, o Bichano, o Tasca do Manel, o Baiuca e o El Ultimo Tango. Fora do Bairro, o Chez les Bananes, de José Costa Reis, fazia-lhes sombra. Ia-se tomar um copo ao Frágil, a Os Três Pastorinhos, ao Sudoeste, ao Oficina e ao Bairro Alto. As pistas de dança eram minúsculas, comparadas com as de agora, e dançava-se ao som de música cantada, isto é, havia vozes e ritmos que nos impeliam para as pistas, como os de Madonna, Michael Jackson, Simply Read, Gloria Gaynor ou The Pointer Sisters. Elegiam-se “hinos” gay nas canções It’s Raining Men e I Will Survive. Nesse tempo, e no geral das conversas na noite, notava-se que se lia pouco mas que se via e ouvia muito. Falava-se apaixonadamente das coreografias de Olga Roriz, descobria-se a música de Philip Glass, assistia-se com emoção a um espectáculo de Gal Costa, vibrava-se com um concerto de Tina Turner e ia-se quase às lágrimas com a medalha de ouro de Carlos Lopes. Filmes como Amadeus, Blade Runner ou Blue Velvet eram imperdíveis. Elogiava-se a beleza de Fanny Ardant em A Mulher do Lado, a excelência de Glenn Close em Ligações Perigosas, a revelação de Michelle Pfeiffer em Scarface, a descoberta de Daniel Day-Lewis em A Minha Bela Lavandaria. Assistia-se a discussões acaloradas entre quem estava a favor ou contra as greves gerais que ameaçavam derrubar os governos de Pinto Balsemão e de Cavaco Silva, quem apoiava ou não a demolição do Monumental, ou quem apreciava ou detestava a arquitectura de Tomás Taveira. Propagavam-se boatos infames como o das “Doce” e especulava-se impunemente sobre que mulheres estariam envolvidas no “escândalo Taveira”. Fernando Chalana e a mulher Anabela eram uma espécie de Marco e Sónia do primeiro Big Brother português e D. Branca era a única mulher idosa que merecia atenção. Consumia-se muito álcool (gin e uísque estavam no topo da lista), fumavam-se “charros” mais ou menos discretamente, e o sexo era servido à la carte até surgirem as primeiras e confusas notícias sobre a Sida. No Bairro reinavam José Miranda e Fernando Fernandes, proprietários do Pap’Açorda, e Margarida Martins, então a porteira e relações públicas do Frágil, que determinava, com mão de ferro, quem entrava ou não no bar/discoteca. Se noite não era dada por finda, rumava-se ao Jamaica, no Cais do Sodré, ao Lontra, em S. Bento, ou ao Trump’s, no Príncipe Real. Sem saudosismos, acredito que já nada tem o sabor da descoberta, do risco, da transgressão e da originalidade desse tempo. Provavelmente, nem a nova música dos Duran Duran...

 

publicado por Perplexo às 00:17
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De Pedro a 10 de Maio de 2009
De facto um post interessante sobre os anos 80, foi e ainda continua a ser uma época de referencia com uma mão cheia de nomes que fizeram essa década ser um marco na diferença...
Mas não podem faltar nomes como Inês Simões, Vítor Neto, Zica Gaivão e Pedro Lata todos eles criadores de moda. Modelos como Valentim, Ana Silva e Sousa, Gin, Ana Moura, Paulo, Zé Manel e Ana Mata. Na pintura e escultura António Palolo , Pedro Croft , Cabrita Reis e Ana Vidigal. Todos estes nomes e tiveram e fizeram história em 80, anos que se reflectem ainda hoje de uma forma directa/indirecta na vida portuguesa.

Um abraço
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