Sexta-feira, 6 de Janeiro de 2006
Apesar de ignorantes dos preceitos de Direito que nos protegem, e dos mecanismos judiciais que nos enquadram, sempre julgamos que a Lei devia servir a Justiça. Quando a Lei (na sua aplicação prática, nos tribunais) não serve a Justiça e até, antes pelo contrário, comete o que parece ao senso comum ser uma injustiça, ficamos perplexos. O que nos dizem é que é assim para que não se cometam “irregularidades” processuais e, em última análise, de defendam os inocentes. Mas quando aquela família do Barreiro cujo filho caiu por um buraco, vítima da ineficiência de um serviço municipal, vê o julgamento mais uma vez adiado (ou anulado) porque uns depoimentos gravados em vídeo foram mal gravados, perguntamos onde é que está o senso comum do tribunal. Se é certo que a criança morreu, e se é cristalino que foi devido a um descuido dos serviços camarários, de que servirá adiar mais uma vez o pagamento da indemnização -" a qual, não pagando a dor, dá a legítima compensação material. Por causa desses testemunhos mal gravados não se saberá ainda quais os responsáveis individuais dentro do aparelho camarário? Pois que se esclareça essa parte, mas não se prolongue o calvário dos pais. O tribunal, agarrado ao que nos parece ser uma mesquinharia processual, prolonga a injustiça.Já tínhamos visto uma situação semelhante no caso do Aquaparque, em que finalmente os responsáveis conseguiram que o processo prescrevesse. É um truque muito usado, e bastante nojento: os advogados vão arranjando problemas processuais, o que é fácil num sistema extremamente burocratizado, e entre os atrasos processuais e a lentidão das sessões consegue-se chegar à prescrição. Do mesmo modo, quando sabemos que a bebé Fátima Letícia foi severamente torturada por uns pais mentecaptos com o apoio da avó destrambelhada, e que as diversas instituições que a vigiavam não conseguiram impedir tamanha enormidade, ficamos de boca aberta ao ver como as pessoas usam os termos da Lei para não fazer Justiça. Na altura em que Fátima Letícia foi internada pela primeira vez, os médicos do Hospital de Viseu disseram - disse um deles à frente das câmaras - que tinha detectado os maus tratos, mas informara as entidades competentes, deixando a criança voltar para os pais com a consciência do dever cumprido. Nenhum médico se lembrou de dizer “não me interessa o que diz a lei, não me interessa se há autoridades competentes para tratar disto; a criança tem de ficar à guarda do hospital até se ter a certeza de que não poderá voltar a ser mal tratada.” Não; o médico achou que bastava a informar os serviços de assistência social para tirar a água do capote, livrando-se assim de responsabilidades. Os serviços, por sua vez, não viram o que sabiam existir - os maus tratos - porque a criança estava a dormir e não quiseram perturbar-lhe o sono, mesmo que fosse uma agonia. Mas agiram segundo a lei: foram a casa dos bandidos e “viram” a criança, apenas para poder por no formulário respectivo que a tinham visto. Mais uma vez nos é dito da necessidade de seguir procedimentos legais. Quanto a Fátima Letícia - o nome que lhe deram não é já por si uma forma de violência infantil? - que se aguente nas canetas, possivelmente aleijada, enquanto os diversos departamentos negoceiam as suas responsabilidades no crime. Não devia o hospital ter retido a criança logo à primeira vez, e não a deixar sair enquanto a) não estivesse completamente curada e b) tivesse a certeza absoluta de que não voltaria para os pais? Não deveriam as assistentes sociais fazer o seu trabalho como deve de ser, isto é, inspeccionando a criança completamente, constantemente, em vez de se preocuparem em preencher formulários para apresentar serviço? Os procedimentos legais têm não só de fazer cumprir a Lei; também têm de fazer Justiça. Há falta de pessoal? Que trabalhem mais. Os procedimentos permitem certas negligências? Ultrapassem os procedimentos. É o que se espera de pessoas humanas, informadas e interessadas no bem estar dos indefesos. Tudo isto enquanto os casos se arrastam indefinidamente, cada dia mais um dia de terror para os que esperam Justiça, mais um dia de privilégio para os que se protegem com a Lei. A combinação do sistema de prescrições com os atrasos inacreditáveis do processo penal só pode levar a esta paródia aterradora. Não é uma questão de mudar a Lei; é uma questão de realmente querer fazer Justiça.