Sexta-feira, 17 de Março de 2006
No mês passado, a propósito do estilo do “24 Horas”, tinha dito que falaria sobre a comunicação social e os jornalistas. Agora que os tempos andam mais calmos, talvez seja uma boa altura. Para já, creio que é preciso distinguir a comunicação social escrita da televisão. Os jornais e as revistas informativas semanais (não há nenhuma revista informativa mensal, o que já diz algo sobre a situação) regem-se basicamente pelo estatuto jornalístico clássico que vem das redacções tradicionais, altamente hierarquizadas, do jornalismo como um quarto poder isento e imparcial, e de um código deontológico de alta nobreza, onde a honra e o segredo profissional deviam ser defendidos até à morte. Logo após o 25 de Abril, com a politização geral da nação, os jornalistas pertenciam todos ao sindicato da classe, sindicato esse que agia com plenos poderes para tutelar o correcto exercício da profissão (o que não quer dizer que tenha conseguido) e para garantir os direitos e os salários que, esses sim, podiam dar uma verdadeira independência aos profissionais. Não quer dizer que as coisas fossem perfeitas, longe disso, mas existia um espírito de classe, e tanto proprietários como direcções, como o mais baixo estagiário, podiam ser chamados à pedra nos desvios mais evidentes. Ainda hoje, em que essa situação mudou radicalmente (já lá iremos), todos fingem que esse código de cavalaria ainda existe. Na televisão do pós 25 de Abril, a situação era semelhante; o jornalismo estava completamente separado do “entretenimento”, regia-se pelo mesmo código; e os meios técnicos só lhe permitiam o mesmo ritmo da imprensa escrita, isto é, um noticiário por dia, em tempo diferido. Mas a televisão mudou completamente. A partir do nascimento da SIC, e sobretudo a partir da altura em que a TVI se tornou laica, a televisão passou a ser um espectáculo, do qual o noticiário era apenas uma parte. Essa mudança de filosofia deve-se em parte aos meios técnicos, que permitem os “vivos” de qualquer parte do planeta, e em parte à noção de que o lado espetacular é mais atraente par o espectador do que as notícias puras e duras. Simultaneamente, com o fim da obrigatoriedade sindical, o Sindicato perdeu completamente a força e passou a ser frequentado apenas pelos voluntários “hard core” da esquerda mais militante. As redacções passaram à situação actual, em que quase ninguém pertence ao sindicado. Há directores, chefes de redacção e editores que se orgulham mesmo de não pertencer. Na televisão, passou-se a cultivar um jornalismo espectacular e imediato, onde não há tempo, nem paciência, nem necessidade, para os pruridos da imprensa escrita. A notícia é o visual, e o facto de haver imagem dispensa uma segunda fonte, uma contra-opinião, ou uma perspectiva mais abrangente. Não há nada de intrinsecamente mau ou errado no jornalismo televisivo, é apenas diferente – talvez seja mais contemporâneo, mais apropriado para a época em que vivemos, e mais consonante com as possibilidades da imagem mundial em tempo real, com as transmissões instantâneas e com o pouco tempo que as pessoas têm para saber o essencial. Quando, há cinco anos, surgiu a SIC Notícias, a metamorfose estava completa: o noticiário é um espectáculo véritè, mas primeiro que tudo um espectáculo. Notícia que não tenha imagem, não existe. É essa a hierarquia de importância. Posta esta diferença (mas não esgotadas as diferenças) falemos da comunicação social escrita. O grande problema, o fundo da questão e a origem de toda a situação, é que a comunicação social escrita se tornou um mau negócio. As tiragens são muito pequenas, e tiragens pequenas implicam poucas receitas (de venda ou da publicidade), pelo que é preciso economizar ao máximo. Mesmo assim, poucos orgãos são rentáveis. Economizar, onde? O papel custa o que custa, o fabrico já está automatizado ao máximo, a distribuição só tende a tornar-se mais cara. Portanto, toca de economizar nas redacções. Na base, usam-se estagiários que trabalham de graça, na esperança de um dia ver a ser efectivos. Na hierarquia, usam-se jornalistas novos, ainda baratos mas com muita energia, para trabalharem 24 horas por dia sem uma queixa. A este pessoal a preço de saldo (a maioria a recibo verde, claro está) dão-se os menores meios possíveis: chamadas controladas, inter-urbanas só com autorização, deslocações medidas ao quilómetro, despesas zero. Salvo raras excepções, não há dinheiro para investigações mais profundas ou mais demoradas. Um redactor deve produzir tantas linhas por dia, tantas peças por semana, outras tantas por mês. Não pode investigar durante semanas ou meses, a não ser que vá publicando durante esse tempo, mostre serviço enchendo espaço. Em parte nenhuma do mundo civilizado a comunicação social está entregue a uma hierarquia tão nova e com meios tão limitados, a competir entre si praticamente com um computador (partilhado) e meia dúzia de telefonemas. O resultado só pode ser uma qualidade muito fraca. Desde os mais básicos erros de português, passando por peças que não se percebem, até se chegar a notícias que não são notícias, acontece de tudo. Não há nenhum caso, por mais interessante ou escandaloso, que seja acompanhado durante o tempo que que precisaria ser acompanhada. Se formos ver, mais de metade dos casos levantados no ano passado desapareceram de vista sem sabermos qual foi o desfecho. Tirando o caso da Moderna e a Casa Pia, passou tudo como um ápice pela vista dos leitores. Mas o pior talvez seja as notícias que posteriormente se verificou serem falsas, ou incorrectas, ou mal contadas, e que nunca foram corrigidas. A culpa não é de quem trabalha nas publicações, evidentemente; não têm experiência, são mal pagos e são muito poucos. (Só um dado: o New York Times tem uma redacção com 1.2oo profissionais, mais do que TODAS as redacções portuguesas juntas!) A culpa também não será dos proprietários, que se têm um negócio é para ganhar dinheiro ou, pelo menos, para não perder. A culpa não é de ninguém, de nenhum grupo ou clique específica. Aliás, para haver culpados é preciso haver vítimas, e o público leitor em geral não se tem queixado. Por estas razões, a nossa comunicação social escrita é o que é.