Terça-feira, 23 de Maio de 2006
O Prós e Contras de hoje foi um prato cheio. Só perdeu quem quis, uma vez que já tinham sido anunciados os convidados e a mistura garantia muito sangue: Manuel Maria Carrilho e Emídio Rangel com as brancas, Pacheco Pereira e Ricardo Costa com as pretas. O tema vinha a propósito do livro de Carrilho, pois, como ele insistiu até ao fim, “este livro não é sobre a minha campanha eleitoral, é sobre o estado da imprensa em Portugal.” Falou-se sobre muitas coisas interessantes, e até coisas interessantes se falaram, suficientes para dez programas de Tv. e mil blogues. Não podendo abarcar tudo, vou limitar-me a uma das questões, mas antes não posso deixar de dar duas notas sobre o debate. Primeiro, que educativo foi, comovente mesmo, ver o Emídio Rangel a defender o bom jornalismo e a atacar as manipulações televisivas do noticiário. Rangel é um dos principais responsáveis pela introdução neste país do noticiário-espectáculo e do jornalismo não jornalístico. Só não foi ele que introduziu as manipulações porque chegou tarde, mas foi sem dúvida inovador. Rangel portanto, com o currículo que se lhe conhece, vem agora falar de probidade! Segundo, que estimulante foi o confronto de duas inteligências de faca afiada, Carrilho e Pacheco, um no género trauliteiro, o outro melífluo. Atiravam rockets envoltos em veludo através da terra de ninguém, onde pontificava Fátima Campos Ferreira, entre entusiasmada com a animação do programa e receosa que aquilo lhe saísse de controle. Mas então, entre outros assuntos congéneres, falou-se muito da “tenebrosa” acção das agências de comunicação junto dos jornalistas, comprando-os, aliciando-os, levando-os a distorcer os factos ou, no mínimo, mandando-lhes notícias facciosas que eles publicam sem contra-prova. Não faltaram argumentos morais do tipo “os políticos agora contratam mercenários para lhe fazer a imagem” e argumentos práticos, género, 70 por cento das notícias dos jornais são enviadas pelas agências. (Dito pelo Rangel e, francamente, sujeito a confirmação.) À nossa moral choca que a mesma agência possa fazer hoje a campanha do Sócrates e amanhã a do Cavaco – um caso concreto. Elas alegam, evidentemente, o profissionalismo; fazem-no por dinheiro, que não tem ideologia. Daí, aliás, o adjectivo “mercenários”. Depois, também, o facto dos jornalistas se deixaram comprar, não com dinheiro à vista (embora essa hipótese não fosse excluída) mas com presentes, pequenos favores, agrados vários. Pacheco Pereira até deu um exemplo: políticos em Bruxelas que pagavam a viagem aos jornalistas para eles depois publicarem as opiniões desses políticos, que de outro modo não apareceriam na comunicação social. Daí partiu-se para o facto de outros grupos de interesse, que não os políticos, também usarem as malditas agências para vender o seu peixe à imprensa. Ora bem, vamos por partes. Primeiro, é um facto corrente da vida moderna que todos os políticos (que podem), partidos e forças vivas do comércio e da indústria usam agências de comunicação. Se isso é bom ou mau, como princípio, pode ser discutido interminavelmente, mas é uma questão ultrapassada, pois elas cá estão e vão ficar, não podendo numa democracia haver mecanismos legais que as proíbam. Mas o facto é que a sua actividade em si não são um mal, nem sequer um problema. Se trabalham para A ou para B, sem pruridos ideológicos, é problema delas; como todos, de A a Z, as utilizam, a situação fica moralmente equilibrada. Numa sociedade cheia de ruído, é impossível fazer-se ouvir sem um alto-falante. Agora, se as agências, ou os políticos, ou os comerciantes, compram os jornalistas, já é outra questão. E era a ela que queríamos chegar. Veja-se o caso dos deputados. O que eles oferecem ao jornalista é uma viagem, sem condições, a troco de uma hipotética exposição. Mesmo assim, era muito melhor se fosse a redacção a decidir quem entrevistar, e a pagar do seu bolso a deslocação do jornalista, para estar completamente à vontade. Em muitos países, seria impensável o contrário. Mas neste país as redacções não têm dinheiro para isso. Para dizer a verdade, nem têm dinheiro para mandar os jornalistas de Lisboa ao Porto, quanto mais a Bruxelas, excepto em casos muito especiais. A opção seria não ter um artigo feito em Bruxelas, com um tipo que pode não ser muito fantástico, mas que sempre é um deputado português em Bruxelas. E há sempre a liberdade de se dizer o que se quiser, embora não se vá dizer cobras e lagartos… Estão a ver a coisa? O problema de fundo não é as agências, nem os políticos, mas sim a indigência da comunicação social. ("Os pobres não podem dar-se ao luxo de ser honesttos",podia ter dito o Paulo Portas.) À falta de meios, toca a aceitar a viagenzinha para ter um exclusivo. Também toca a usar as informações enviadas pelas agências, às vezes sem maior contra-prova do que um telefonema ou dois, porque não há dinheiro para por um jornalista passar dois ou três dias a levantar aquele material todo. Isto não quer dizer que haja corrupção contínua, mas é uma situação potencialmente perigosa e pontualmente vergonhosa. E a falta de dinheiro não é só para as despesas em serviço. É também para pagar a muitos jornalistas experientes, que sabem distinguir melhor o trigo do joio e contornar armadilhas. As redacções têm muitos estagiários, porque são baratos, e recorrem muito a freelancers, também baratos, uns e outros sem vínculo empregatício. Resumindo (podíamos enumerar mais limitações de qualidade motivadas pela falta de fundos) as redacções não têm dinheiro para fazer o seu trabalho, e as agências têm dinheiro para fazer o trabalho por elas. Isso é um facto real que leva a uma informação espartilhada, a constantes incómodos deontológicos e a eventuais casos graves. É o preço que pagamos pela pobreza, mas (ainda) não é uma situação catastrófica nem a democracia está em perigo. Também, se o público comprasse mais jornais de consequência e menos jornais da bola, as coisas podiam melhorar – ou não piorar. No fundo, todos têm o que merecem.