Os professores concordam que precisamos de uma reforma do ensino – desde que, evidentemente, não acabe com a sua inimputabilidade profissional. Os funcionários públicos são unânimes quanto à necessidade de mudanças nas repartições – desde que não mexa nos seus previlégios. Os autarcas reconhecem a necessidade de reformar as finanças locais – desde que não elimine a sua capacidade de endividamento indescriminado. Os juízes estão cientes da necessidade de mudar o aparelho judicial – desde que não se toque no seu estatuto e hábitos de trabalho.
Toda a gente se queixa do Governo. Para além das perenes acusações de bandalheira e “compadrios”, há a constatação rotineira e deprimente da ineficiência de todos os degraus da administração pública. Estamos sempre a dizer que não temos um Estado competente, que tome decisões coerentes, lógicas e funcionais,ao menor custo e com o máximo de resultados.
Mas o Estado é constituido por portugueses, não é verdade? Ora os portugueses, somos nós mesmo a reconhecê-lo, não são nem eficientes nem funcionais. Queríamos então o quê? Ser governados por suecos, ou alemães? O Estado, composto por eleitos e nomeados, vai buscar o pessoal à população em geral, e portanto reflecte a postura geral dessa população. Se na minha casa gasto mal e acima das possibilidades; na minha empresa tomo decisões ao sabor dos acontecimentos, sem programar a longo prazo; permito e favoreço a politicagem entre o pessoal; estou pronto a aproveitar todos os furos fiscais, legais e institucionais; estaciono o carro em terceira fila e desapareço três horas; se sou assim, porque razão hei-de esperar que os altos altos (e baixos) cargos da gestão nacional sejam ocupados por indivíduos económicos e previdentes, bons gestores, com visão a longo prazo, oprobos e sem interesses pessoais, bons cidadãos, incapazes de se aproveitar dos seus previlégios? Se dou parte de doente para ir passear, trabalho às escondidas do fundo de desemprego e aldrabo os dados da reforma, porque hei-de criticar as altas benesses que os administradores das grandes estatais outorgam a si próprios?
Os governos, além da sua natural ineficiência, ainda têem que enfrentar o descontamento quando lhes passa pela cabeça fazer alguma coisa que se veja. Quando reformam, têm de reformar devagar, timidamente, com cortes cirúrgicos, para minizar o descontentamento dos atingidos. As oposições bradam imediatamente que a)não se está a reformar com o vigor e a profundidade necessários, b) está-se a reformar indescriminadamente, ou na direcção errada. Isto a até passarem a Governo e proceder exactamente da mesma maneira.
Tudo isto vem a propósito, evidentemente, das “mudanças profundas” que o Governo actual está a tentar “implementar”. Mas a tentativa começou no Governo Durão Barroso. O Durão, lembram-se?, entrou com uma grande vontade reformista, e Manuela Ferreira Leite parecia disposta a tudo. (Depois Durão teve uma proposta de emprego melhor e abandonou o posto de trabalho sem aviso prévio, como faz toda a gente — mas há-de voltar como candidato a Presidente da República…) Quem segue os inúmeros indicadores da opinião pública (desde os inquéritos especializados aos programas televisivos em que as pessoas falam da boca para fora) verifica que há um consenso geral: o tempo das vacas gordas acabou e é preciso apertar o cinto. Até aí todos concordam – todos, mas não os muitos que são atingidos pelas apertadelas concretas.
Pois é, apertar o cinto significa má qualidade, em todos os sentidos: custo de vida mais alto, reforma mais pequena e mais tardia, pior assistência médica, maiores impostos, serviços públicos menos eficientes. Se os cortes são feitos assim ou assado, é uma questão de opções políticas (ou interesses ocultos, diriam os cínicos); mas têm de ser feitos e, em última análise, têm de doer a todos.
“Não devem ser os trabalhadores a pagar a crise”! Lá isso é verdade. Mas os capitalistas também a pagam, à sua maneira. Toda a gente tem de pagar a “crise”. Porque, há que reconhecê-lo, a culpa dos governos que temos, e a culpa de sermos como somos, é só nossa.