O mundo inteiro está suspenso nas eleições legislativas “intermédias” dos Estados Unidos. É a maldição imperial: quem vota são os americanos, mas os resultados terão uma grande influência (de vida ou de morte, em muitos casos) nas vidas de milhões de não-americanos. É como se o nosso futuro, o nosso destino, estivesse à mercê da opinião de um redneck estúpido do Dakota do Sul.
Talvez esteja a dramatizar um pouco, mas nem tanto. Na realidade, os resultados desta eleição não se farão sentir imediatamente, uma vez que o regime presidencial norte-americano na maioria dos casos dá a Bush poder de decisão acima das câmeras, e sobretudo nos casos mais decisivos. Ser-lhe-á mais difícil governar, mas pode continuar com as suas linhas políticas gerais, nomeadamente no campo ambiental e internacional, as duas áreas que mais nos afectam a médio e longo prazo. Pior ainda, os estragos que a “administração” Bush causou ao mundo são irreparáveis: o mundo mudou, e para pior, por causa das suas desastrosas decisões, e pode consertar-se (talvez) mas não se pode voltar atrás.
No entanto estas eleições, que apenas mudarão uma parte do Senado e da Câmara dos Representantes, têm efeitos importantes: primeiro, servirão para confirmar a rejeição do eleitorado à política de Bush, darão aos democratas novo alento para as presidenciais daqui a dois anos, e tirarão ao Presidente alguma legitimidade nas decisões que vier a tomar. Abrem uma janela de esperança, digamos assim. Por isso o mundo segue atentamente as desinteressantes peripécias das eleições – desinteressantes porque os discursos dos republicanos, agora reduzidos a um maniqueismo maoista, ficam-se simplesmente por “ou nós ou o terror”, enquanto os democratas não têm realmente nada a dizer. Querem mudar as linhas da gestão Bush, mas não sabem como nem quando. O poder tornou-se uma batata quente, e ninguém sabe como será que o próximo Presidente irá descalçar as botas de ferro que este calçou.
Mas então, no meio do desinteresse dos discursos, eis senão quando surge John Kerry, o candidato derrotado das presidenciais passadas, a dar uma ajudinha aos republicanos. Kerry, que não é parvo mas parece, devia ter ficado em casa, sabida que é a sua inaptência para comunicar com as massas. Em vez disso, foi fazer uma afirmação que aparentemente “ofende as forças armadas”, atitude que não fica bem a ninguém num momento em que as ditas forças armadas estão a penar para se manter ao de cima no Iraque, com as baixas a crescer diariamente. Os republicanos, desesperados com a perspectiva de perderem as câmaras legislativas, e sem terem realmente nada a que se agarrar a não ser o patrioteirismo mais básico, não perderam tempo com uma barragem mediática, e Kerry imediatamente pediu desculpa – a pior coisa que se tem de fazer a seguir a fazer uma coisa má. Contudo, será interessante analisar o que Kerry disse, porque não foi uma estupidez em si, mas apenas uma afirmação complexa demais para um discurso de campanha. Literalmente, foi o seguinte:
“Vocês sabem onde vão acabar se não estudarem, se não forem espertos, de tiverem preguiça intelectual? Vão acabar metidos numa guerra no Iraque. Perguntem como é ao Presidente Bush.”
Para já, o que aconteceu foi que Kerry tinha o texto escrito, um texto ligeiramente diferente: em vez de “vão acabar metidos”, o que lá estava era “vão acabar por nos meter” (“you end up getting stuck”, disse ele, “you end up getting US stuck”,dizia o texto). Portanto, o discurso escrito dizia que um retardado como o Bush, que não estudou, não é esperto e tem preguiça intelectual, meteu-nos numa guerra no Iraque. O que é verdade, evidentemente. O que Kerry acabou por dizer é que quem não estuda, etc. acaba entalado no teatro de operações do Iraque. Um erro imperdoável no discurso, mas não exactamente um conceito errado, e o deslize de Kerry provavelmente será porque pensou nisso mesmo.
Ora vejamos: desde que os Estados Unidos acabaram com o serviço militar obrigatório, as tropas americanas passaram a ser formadas por duas instituições distintas: as Forças Armadas propriamente ditas, compostas por militares profissionais, contratados e pagos como em qualquer outra profissão, e a Guarda Nacional, uma milícia de voluntários, que em tempo de paz treina umas semanas por ano e faz exercícios mais ao menos ao estilo de “paintball”. Agora, em tempo de guerra, é a Guarda Nacional que fornece a maior parte do contingente para o Iraque, mediante contratos individuais com bastantes benefícios. A maioria da Guarda Nacional é composta por gente que foi para lá porque não sabia fazer mais nada: desempregados, pequenos delinquentes, gente sem profissão e sem destino na vida que não nunca conseguiria arranjar um emprego tão bem pago. Há também muitos imigrantes, pois o contrato com a Guarda garante-lhes a nacionalidade americana no final do serviço. Por outro lado, não há ninguém com boas habilitações profissionais ou com nível económico que se meta na alhada de ir para o Iraque – tanto que o exército se tem visto aflito para cumprir as quotas e viu-se obrigado a aumentar bastante os benefícios (seguro de vida, por ex.) e a reduzir os critérios (pequenos delinquentes, por ex.). Portanto não é errado dizer que o grosso das forças armadas é constituído pelos pobres, ignorantes e desesperados.
Não é errado, mas é politicamente incorrecto e altamente inconveniente… Uma palavra apenas – “us” em inglês, poderá tirar os preciosos votos que darão a maioria aos democratas? O mundo aguarda, e podemos concluir filosoficamente que é com minudências que se moldam os destinos do mundo…