Já escrevi aqui sobre a inutilidade e imbecilidade do programa da RTP para determinar "O Maior Português de Sempre", ou lá como se chama, abrilhantado pela inenarrável Maria Elisa, a vergonha (e opróbio) da nossa profissão. Não tenho visto, nem acompanhado, nem sei se está a correr melhor ou pior; no outro dia passei por ele, vi a dita cuja a perorar e mudei logo de canal. Mas fiquei a saber, pela imprensa escrita e pelos telemóveis de alguns amigos e conhecidos, da guerra que se estabeleceu entre os adeptos de Álvaro Cunhal e António Salazar para que o respectivo ídolo ganhe o concurso.
Diz-se que os comunistas, com a sua feroz organização, estão todos mobilizados a votar em Cunhal. Para contrabalançar tão criminosa actividade, a direita ultramontana montou uma operação de decepção e engano, que consiste em enviar sms alarmistas às pessoas ("liga-me urgentemente") que as levam a votar inadvertidamente em Salazar quando respondem à mensagem.
Resumindo, uma disputa imbecilóide mas que podia ter alguma graça, tornou-se numa batalha entre dois cadáveres, alimentada pelos amantes do antigamente. É indiscutível que nenhum dos dois falecidos poderia, em sã consciência, obter o título (também é indiscutível que Salazar foi muito mais importante que Cunhal, mas não quero entrar por aí...). O que me deixa perplexo é como o passado recente, que deveria estar enterrado - em campa rasa e a boa profundidade - de repente vem para a actualidade, como se não houvesse coisas mais importantes, ou mais prementes, para ocupar a cabecinha das pessoas. Salazar e Cunhal representam uma situação dialética sinistra e perversa que assombrou a sociedade portuguesa durante 50 anos, e sujas sequelas ainda se fazem sentir 30 anos depois -talvez porque por sua vez fossem a continuidade de questões nunca resolvidas na nossa cultura. Em termos práticos, Salazar foi muito pior, mas apenas porque teve o poder de sê-lo; em termos teóricos não há diferença entre a maldade de ambos - cometida sempre em nome do bem comum, como é de praxe entre os tiranos.
Tenho de admitir que terão de morrer ainda algumas gerações (inclusive a minha...) para que esta história passe definitivamente para a História. Até lá, e dada a falta de imaginação e originalidade de alguns promotores do entertainment nacional, lá vamos ter que aturar estes disparates. O melhor é mesmo ver a Al Jazeera.