Um amigo meu precisou de ir à igreja colocar uma vela ao seu santo de referência. Porque é que ele precisou, ou aquilo em que acredita, não vem para o caso. A história tem a ver com o que ele encontrou.
Não sendo uma pessoa frequentadora habitual de igrejas, o meu amigo resolveu ir à do seu bairro - São Sebastião da Pedreira, uma peça não muito grande nem muito boa, escondida num largo muito discreto atrás do movimento intenso e contemporâneo da Av. António Augusto Aguiar. Era meio da tarde quando chegou, e deu-se com a porta fechada. Um papel pregado na vetusta madeira dizia que a porta estava a ser arranjada e podia-se entrar pela lateral. Essa lateral, pequena e chapeada a ferro como uma masmorra, também estava fechada. Uma senhora com ar rebarbativo disse-lhe agressivamente que a igreja só abria às cinco e meia. E lá voltou ele por volta das seis, a porta entreaberta e pesada. Dentro encontrou quatro velhinhas a rezar, tão velhas e tão amachucadas que mais parecia um filme de terror. Reinava a obscuridade, pois nem velas acesas se viam. Tudo tinha um ar velho, decadente, estragado. É inacreditável, pensou ele, o que aconteceu à igreja matriz duma das freguesias mais antigas e tradicionais de Lisboa. É verdade que a freguesia tem perdido continuamente habitantes desde a década de 60, e a Igreja Católica fieis desde mais ou menos a mesma altura. Mas um espectáculo de tal decadência faz tremer a alma mesmo do mais empedernido dos ateus. Na sacristia, o o meu amigo encontrou uma senhora igualmente antiga e sobriamente vestida. Queria comprar uma vela e colocá-la num sítio qualquer. A senhora falava com um tom... acossado. Disse-lhe que os tocheiros das velas tinham sido todos roubados. E que a porta principal estava a arranjar porque tinha sido seriamente danificada noutra tentativa de assalto. ("Não conseguiram arrebentar o ferrolho de cima, mas serraram-na em baixo.") E o sacrário também estava muito estragado porque tinham tentado arrancá-lo em mais outro assalto, parece que anterior a todos estes.
O meu amigo comprou a vela (não havia troco, e a mulher mal queria acreditar quando lhe deu a nota, para ajudar à porta), acendeu-a, lá fez as suas promessas, e depois teve de a apagar, porque não havia onde deixá-la. A senhora prometeu que a acenderia na missa, ao lado do altar, não se percebeu bem onde.
O meu amigo saiu da igreja completamente deprimido. Não por ter visto a igreja às moscas quase mortas, mas pelo que vê implícito nestes roubos. Não se trata de pensar em sacrilégio ou ira divina (coisa em que os ladrões também não acreditam, evidentemente) mas no que significa roubarem-se objectos sagrados para venda no mercado de antiguidades.
Quem rouba é ladrão, não há dúvida. Provavelmente não tem cultura, nem dinheiro, nem quaisquer valores disto ou daquilo que o levem a pensar duas vezes antes de cometer este atentado moral e cultural. Mas... quem compra? Tem dinheiro, portanto alguma informação há-de ter, e sabe muito bem que está a comprar património simbólico que só pode ser roubado, e a ofender as convicções mais profundas de muita gente. (Em última análise, também se arrisca a ir para o inferno, que pode não existir, mas que caso exista será certamente para tipos como ele...)
O meu amigo, que, segundo creio, não é crente, sentiu-se ofendido com aquele saque, para mais sabendo que os objectos jamais serão encontrados. Mas o que ele espera, sinceramente, é que a vela, mesmo sem castiçal, leve a promessa até ao céu.