Quarta-feira, 17 de Dezembro de 2008

Crónica dos milagres do Reino

Este texto foi publicado no "Jornal de Negócios" na altura das eleições para a direcção do PSD. O jornal pediu a três escritores que fizessem peças de ficção sobre os três candidatos e a mim caiu-me na rifa o Santana Lopes. Posto-o agora porque, como se verá, não perdeu actualidade; antes pelo contrário, a candidatura de Santana à CML só confirma o que ficou dito na altura. 


O chamado romance histórico é o que está a dar. Mas nem todos são apócrifos. Ficções há que se baseiam em documentos históricos, como é o caso desta crónica.


 Conta-se que no tempo em que os animais falavam e os homens acreditavam no intangível, andava pela terra um homem recto cujo nome era Pero Lopes, mas que todos conheciam como o Santinho. A sua vida e obra até hoje são motivos de espanto.


Nesses tempos remotos, em que a separação dos pelouros ainda não tinha sido estabelecida pela Idade das Luzes, havia uma certa confusão de atribuições entre os senhores da terra. Santinho, sendo encarregado de tomar conta das Artes, acabou por se meter num imbróglio que tinha mais a ver com construcção civil e clubismo, conhecido como  “o caso da pala do Sporting” (as crónicas não são muito claras quanto aos meandros desta situação). Foi, por assim dizer, o acontecimento mais importante desse período cultural. Ficou conhecido como o “milagre da das elevações”; nem a pala caiu, nem Santinho.


Na mesma época um dos seus acoólitos teve o atrevimento de colocar no Index dos livros probidos a santa obra de um profeta muito venerado. Apanhado no escândalo, Santinho decidiu com justiça: desterrou o apaniguado e criou um grande acontecimento nacional, os “Estados Gerais da Imaginação” para desviar os espíritos para assuntos mais pertinentes. Ao que parece nunca chegaram a realizar-se, talvez por falta de matéria-prima, mas Santinho, sempre parcimonioso, retirou-se da vida pública e foi fazer um cruzeiro pelo Mediterrâneo.


Seguiu-se um período agitado, em que Santinho aparece exclusivamente nas crónicas sociais, por vezes ataviado num estilo bárbaro, o que lhe valeu as críticas dos doutores do reino. Não achavam bem ver um homem de fé com uma bandana na cabeça, já um bocado bebido, agarrado a mulheres de vida fácil — quer dizer, mulheres que se preocupavam mais em laurear a pevide do que cuidar do lar e dos filhos, ou que cuidavam do lar e dos filhos vestidas à última moda, todas pintadas. Mas hoje em dia crê-se que grande parte dessas críticas eram motivadas pela inveja.


Foi então que Santinho fez o seu primeiro come-back. Espectacular, diga-se de passagem, apesar de relativamente modesto para as suas qualidades. Candidatou-se a edil de A-Ver-a-Praia. E ganhou!


Para um homem com o quinto ano de praia isso poderia não parecer estranho, mas os textos são unânimes em dizer que excedeu as espectativas. Ficou então a perceber-se que os cruzeiros  mediterrânicos e as peregrinações nocturnas, por vezes até ao nascer do dia, não tinham sido actividades mundanas, mas sim um investimento. As excelentes relações assim conseguidas colocaram a vila litoral no mapa das férias; era uma ror de gente a passar temporadas em A-Ver-a-Praia — e, evidentemente, a gastar nas estalagens, casas de pasto e tabernas. Documentos tardios mostram que toda a agitação custou uma fortuna aos comerciantes, já que essas pessoas consumiam bem e nada pagavam. Ficou conhecido como o “milagre das bocas-livres”. Além disso, o conjunto de obras sumptuárias e o despesismo teriam deixado A-Ver-a-Praia endividada por várias gerações. Mais outro milagre, o da multiplicação das dívidas. Contudo são textos posteriores, talvez espúrios.


Mas não interessa; impoluto, cheio de energia, Santinho foi pregar para a capital do reino. Com tanto sucesso que também ali se fez eleger edil, vencendo os rivais Agnosticistas Soaristas — uma seita religiosa que imperou nestas partes durante décadas e finalmente foi eliminada da ribalta por vários profetas, inclusive dentro da própria seita.


Dotado do maior orçamento municipal do reino, Santinho não olhou a despesas: tinha uma cozinha bem fornida, carruagens topo de gama, palácios redecorados — tudo a que um homem bom tem direito, sobretudo quando faz bem a tanta gente. A obra mais importante deste período é a famosa Gruta do Marquês; embora nunca fosse terminada, até hoje alivia grandemente a população do congestionamentos na entrada da urbe. Diz-se que é um autêntico milagre que a gruta não caia, uma vez que está a menos de um metro da Gruta da Plebe.


Mas o melhor ainda estava para vir. O douto Patriarca Durão, chanceler do reino, recebeu comanda para ir para a sede do Papado e deixou a chancelaria nas mãos de Santinho.


Chanceler providencial, maravilhosas ideias teve a nossa luminária — inclusive espalhar as secretarias por todas as cidades do reino, coisa nunca vista em nenhuma nação, em época alguma da História. Outras congeminações sairam daquela cabecinha, mas como nenhuma se concretizou, não existem provas documentais.


Contudo, os inimigos conspiravam. Gente soez imiscuiu-se na Corte, a conspirar e mal-dizer. Finalmente o Rei, um homem pusilâmine e indeciso, convocou eleições. O povo, mal-agradecido e impaciente, deu a Santinho a mais estrondosa derrota que os seus já tinham sofrido desde a implantação da Magna Carta.


Todos os julgavam arrumado. Ledo engano.


Numa movimentação que muitos consideram um autêntico milagre, o nosso justo fez o segundo come-back: voltou às Cortes, provocou grande comoção e apresentou-se de novo para o cargo do qual tinha sido tão vilmentente escorraçado.


Mas, por mais extraordinários que os milagres fossem, o mais extraordinário relato refere-se à eternidade de Santinho. A sua morte não está registada em parte alguma. Diz-se que resuscitava a pedido; também se diz que era indestrutível. Por mais que o vilipendiassem, escarnecessem e denegrissem, voltava sempre, como um sempre-em-pé (passe o sacrilégio). O facto é que nunca desapareceu. Nem dos nossos bolsos, nem da nossa frente.


publicado por Perplexo às 20:10
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