Domingo, 25 de Janeiro de 2009

O meio faz a mensagem

MacLuhan esteve certo durante muitos anos, “o meio é a mensagem”. Mas a evolução vertiginosa da tecnologia só poderia ser prevista por um génio da ficção científica (Bradbury, talvez) e não por um cientista, por mais genial que fosse. A televisão mudou a nossa maneira de nos entretermos — na protecção da casa, no conforto do sofá, a ver o mundo a passar ao vivo e a cores, em tempo real. Os computadores mudaram a nossa maneira de trabalhar. Os telemóveis, o modo de comunicar. Tecnologias previsíveis na ficção ciêntifica e nas bandas desenhadas (Dick Tracy).


Parece que ninguém previu que os três se juntassem — e de repente, quase que sem darmos por isso, foi o que aconteceu. E, apesar de já ser uma realidade, ainda vamos demorar algum tempo a habituarmo-nos.


As tecnologias não trazem apenas novos gestos e novos hábitos. A maneira de pensar também muda. A rapidez, as elações e associações. Há mais coisas dentro da cabeça, mas entram e saem mais depressa. Em cinco minutos de televisão uma pessoa recebe a informação de dez livros — as cores, as formas, a sensações e as afirmações... Cinco minutos depois já não se lembra, é verdade, porque há mais informações para entrar.


Esta situação não é boa, nem má; é. Não adianta os conservadores, os renitentes, os clássicos e os bem intencionados bramarem contra os malefícios do “progresso”. O progresso, como a religião e a morte, é inexorável.


Mas o título deste post fala de literatura. O que tem a literatura a ver com tudo isto?


Tem tudo. Hoje em dia não se escreve como se escrevia, nem se lê como se lia — às vezes nem se lê, ouve-se. Tudo (enfim, quase tudo) o que se ouve na televisão é escrito. Mas os textos de televisão (ou de cinema) são diferentes. Têm de ser mais rápidos concisos. Menos ideias de cada vez, repetidas à exaustão. Maoistas, se quiserem. Os computadores permitem editar indefinidamente, mudar as palavras com um replace, matá-las com um delete, resuscitá-las com um undo.


As pessoas já não lêem como liam, porque a cabeça habituou-se a andar mais depressa, a mudar de canal constantemente, a ver dez anúncios na rua ao mesmo tempo, aos ecrãs do Exel a passar na esgalha. E também já não escrevem como escreviam. Exceptuando Miguel Sousa Tavares, já nenhum romancista de renome narra como no século XIX. As frases são mais curtas (ou com muitas vírgulas...) as elipses mais violentas, a explicações mais rápidas. Os tempos dos verbos mudam dentro do mesmo parágrafo, às vezes dentro da mesma frase. O presente, o passado e futuro convivem na mesma página. E as cabecinhas modernas acompanham facilmente.


Então e o estilo, o sabor, o vagar? Pois, perderam-se. Uma pena. Mas há-de haver sempre um ou outro MST para cultivar os estilos arcaicos com elegância e aprumo, e há-de haver sempre leitores para os clássicos.


Agora temos os textos de ficção em blogues, em e-mails, em situações curtas e rápidas. E os livros em ecrãs paper-white. Então a ficção não continuará sempre a ter os seus calhamaços e o seu prazer? Certamente; mas em minoria, para os devotados e os especialistas. A maioria escreve e lê em pequenos ecrãs — nos ecrãs dos super smartphones, cada vez maiores e mais nítidos.


Nããão... Recados, mensagens curtas, talvez. Literatura, nunca!


Ah não? Então e o Japão? Os keitai shosetsu?


Feche a boca, que eu explico já. Rapidamente. À velocidade de hoje.


No Japão, 58% dos pré-adolescentes tem telemóvel. Para os sms da praxe, claro, mas também para ler ficção!


Keitai shosetsu é isso mesmo: ficção celular. Não só por ser escrita e lida em telefones celulares mas também porque o texto é literalmente em células. Um ecrã de cada vez.


Não estamos a falar do futuro, nem a fazer ficção científica. Está no “The New Yorker”, num artigo assinado por Dana Goodyear, portanto só pode ser verdade. Para os são tomés, aqui vai a hard data: é um negócio de 82 milhões de dólares anuais. As obras de ficção celular, são depois impressas em livro, vendem dois, três milhões de cópias. Uma obra de sucesso tem 160 mil dowloads por dia.


Não se pode ignorar nem a cultura, nem a capacidade de inovar dos japoneses. Quanto a cultura, o primeiro romance que se conhece é o Genji Monogatari, escrito por Murasaki Shikibu no começo do século XI. Quanto a inovação (neste caso no mercado editorial de ficção, deixemos os Walkman para outra altura), em 2007 cinco dos 10 romances mais vendidos eram originalmente shosetsu. Enquanto a literatura em livro diminui 20% nos últimos anos, o site da editora de shosetsu Maho i-Land (Ilha Mágica) tem mil títulos listados e 3,5 milhões de visitas mensais.


Agora, perguntarão os intelectuais: e a qualidade dessa literatura?


Bem, sobre isso... Quem somos nós para avaliar?


Mas não vale a pena estar a disfarçar: são romances de faca e alguidar, cheios de incesto, vilania, sangue, suor e lágrimas, e tudo o que possa haver de mais piroso à face da literatura. Em frases telegráficas cheias de emoticons e sinais gráficos.


Será assim que se vai escrever no futuro? Não completamente, com certeza. Mas em grande parte, disso não haja dúvidas.


Mas como o cérebro também se adapta, cada vez é possivel exprimir mais em menos palavras. Os 140 toques do twitter dão para exprimir um pensamento completo. Até mesmo um sentimento complexo. E os sentimentos, esses são eternos.


Todas as tecnologias têm de os levar em conta, porque em última análise e por causa deles que elas existem.




*


publicado por Perplexo às 21:14
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