Há muitos anos, na década de 80, li no “The New Yorker” um artigo de opinião sobre o futuro da informação. Não me lembro do nome do autor, lembro-me muito bem do conteúdo, porque me impressionou bastante — na altura seria uma elucubração ousada, e fiquei completamente siderado com aquilo — não por discordar ou concordar, mas porque francamente ainda não tinha percebido o impacto da “revolução digital” que estava a decorrer.
O autor começava por dizer que antes da existência dos livros impressos (Gutenberg, 1439) as massas recebiam informação através das catedrais. Essas construções extraordinárias, magnificamente decoradas, continham pinturas, estatuária, relevos e vitrais que contavam vividamente tudo o que as pessoas não cultas precisavam de saber — basicamente que deviam viver segundo certos padrões e à imagem dos santos e heróis que as tinham precedido, senão iriam para o inferno. Os livros existiam, mas eram caríssimos de reproduzir, portanto estavam limitados aos senhores das catedrais.
Quando a tipografia facilitou e embarateceu a reprodução e o papel se tornou facilmente disponível, os livros espalharam-se por toda a parte e as massas começaram, muito lentamente, a aprender a ler. Os poderes constituídos perceberam imediatamente o perigo e tentaram controlá-los, impondo castigos formidáveis (nesta e na outra vida) a quem se atrevesse a escrever e publicar obras “impróprias” — basicamente tudo o que pudesse em questão os cânones oficiais.
Mas o que aconteceu é que os livros tinham características que os tornavam imbatíveis em relação às catedrais. Eram portáteis e leves, baratos, discretos e continham muito mais informação — informação codificada de uma maneira mais eficiente. Por mais perseguidos ou desprezados que fossem, os livros representavam um tal avanço na difusão do conhecimento que nada os podia parar.
Segundo o autor, na nossa época há uma resistência semelhante em relação aos meios informáticos. As razões não serão as mesmas (isto é, não se trata de controlar a informação) mas a transferência é inexorável; o novo meio de difusão do conhecimento é mais barato, mais rápido e mais eficiente e portanto torna-se inevitável que a informação digital, em todas as suas formas, ultrapasse e suplante a informação impressa.
Era esta a tese.
Há vinte anos que li isto, e desde então tenho assistido, e participado, nessa mudança de suporte para a informação. E também tenho visto o desprezo, o medo e o conservadorismo com que as pessoas cultas vêm esta evolução. Perante a revolução, há a reacção — e desta vez da parte de quem mais deveria favorecê-la, dos grupos supostamente mais progressistas.
Compreende-se.
Primeiro, na luta contra a ignorância e o obscurantismo, os livros tiveram um papel essencial.
Tornaram-se não só os portadores do conhecimento, mas também o seu símbolo.
No “1984” Orwell fala-nos de como os livros eram manipulados para se adaptar à realidade oficial. Em “Fahrenheit 451” Bradury mostra-nos uma sociedade em que os livros eram queimados e as pessoas decoravam-nos, para que não perecessem. Cada pessoa tornava-se um livro vivo.
Infelizmente não é preciso recorrer à ficção para saber como é; a maioria da população mundial, neste primeiro dia do ano da graça de 2001, não tem acesso a livros, ou não os saberia ler, ou só pode ler o que as "autoridades" quiserem.
Segundo, os livros são objectos com uma beleza própria, não só estética, mas também técnica.
O prazer de manusear um livro, de o abrir e fechar, ler devagarinho, saborear a nosso belo prazer... O conforto da leitura, que pode ser feita em todas as situações imagináveis e em todas as posições físicas possíveis... A posse dos livros, a estante cheia de tanto conhecimento, tanto conforto, tanto prazer...
Até aqui, os defensores incondicionais dos livros têm razão.
Mas outras razões há que não fazem sentido.
1) Os livros contém informações que se perderiam com o seu desaparecimento. É claro que isto não faz sentido. Primeiro, os livros não vão desaparecer, pelo menos enquanto for fisicamente possível conservá-los. E hão-de fazer-se sempre livros (não se fazem ainda catedrais?). Segundo, toda a informação dos livros está digitalizada — aliás, graças a isso, há um acesso ao conteúdo dos livros que nunca seria possível só por eles.
2) Os livros são estética e funcionalmente insubstituíveis. O prazer de manusear um livro, de o ler ao nosso ritmo... A biblioteca com o seu colorido, o seu conforto... É verdade. Mas de qualquer maneira, há que admiti-lo, a estética nunca foi a determinante da sobrevivência de um medium — lembrem-se das maravilhosas capas dos LPs de vinil, ou das incríveis fotografias analógicas de nitrato de prata sobre papel... Aliá, continuarão a existir bibliotecas e livros. Continuarão a fazer-se livros — como ainda se fazem pianos de cauda, colheres de pau e filigrana: por prazer, por arte.
3) Acabando os livros, acaba a escrita e a leitura. Este é o argumento mais estúpido, mas o mais prevalecente hoje em dia. O facto é que, graças à difusão informática, escreve-se mais do que se escreveu e lê-se mais do que se leu, em qualquer época da História. Nunca houve tanta gente a ler e a escrever como agora — e não esqueçamos de que praticamente tudo o que aparece na televisão é escrito.
Posto isto, há que acrescentar as desvantagens da informação impressa. Gasta papel, que gasta árvores, que fazem falta na natureza. O número de árvores destruídas para que as pessoas leiam todos os dias as elucubrações dos jornais ou insistentemente os disparates do Paulo Coelho é arrasador. Milhares de milhões. O papel é impresso em máquinas que gastam toneladas de energia. Distribui-lo é lento, complicado e também gasta toneladas de energia. (Sei de vários casos concretos de jornais vespertinos que acabaram pela impossibilidade de os distribuir atempadamente).Guardá-lo é difícil, caro, perigoso até. Os químicos usados para branquear o papel e depois pintá-lo são aterradores, corrosivos, maus.
O papel é uma catástrofe ecológica.
Depois, os livros são pesados e volumosos; um livro pode ser portátil, mas uma biblioteca é um pesadelo logístico. E o custo?
Podemos acrescentar, até, que são difíceis de esconder, em caso de perigo.
Não preciso de dissertar sobre os modos como a informação digital resolve todos estes problemas de maneira mais racional e mais barata.
É verdade que ainda falta massificar algumas tecnologias para que o digital substitua substancialmente o impresso. Mas elas já existem. (Estou a pensar concretamente nos ecrãs flexíveis.)
Este ano, pela primeira vez, o e-book reader da Amazon esgotou. (É feioso e imperfeito, mas esperem até aparecer um iReader da Apple!) Mesmo o leitor “clássico” mais ferrenho não pode deixar de apreciar o que é ter uma biblioteca inteira (enciclopédias e dicionários incluídos) dentro de um único livro. Anotável, indexável, procurável!
Isto para não falar na grande quantidade de livros, livrinhos e livretos disponíveis on-line, e portanto acessíveis em qualquer sítio, de graça, ou muito baratos. Agora, quem escreve pode ser lido em qualquer parte do mundo, e quem lê pode ir buscar o seu prazer do outro lado do planeta.
Pois é, os livros provavelmente vão acabar. E os jornais também. Mas a escrita está mais viva do que nunca. E a crescer.
(Quem não acredita no futuro, que veja isto: http://vimeo.com/2812014)