Domingo, 1 de Fevereiro de 2009

Comunicação anti-social

Aviso aos navegantes: este post NÃO É sobre política e NÃO É sobre a situação do “caso Freeport”. É sobre informação, e percepções transmitidas pela comunicação social.


 


Há muito tempo que não víamos um “caso” absorver tão grande volume de noticias e comentários, e com tamanha intensidade. Nem no apogeu de tantos processos mediáticos, como o da Casa Pia, ou o Apito Dourado, ou de Fátima Felgueiras (para citar apenas três, entre as dezenas) terá havido uma blitz semelhante.


As primeiras páginas dos jornais, capas das revistas e noticiários da televisão não falam de mais nada — a não ser a ocasional má nova sobre a crise económica e o desemprego. A partir de uma primeira notícia, que provavelmente nem deveria ter chegado ao público — uma carta rogatória enviada pela polícia britânica a pedir determinadas diligências às autoridades policiais portuguesas — a comunidade informativa começou a fazer as suas próprias investigações, debitando-as minuto a minuto nos noticiários, de onde passaram, muito naturalmente, para os comentários, colunas de opinião e debates. Antes que as pessoas pudessem ponderar sobre os pressupostos da situação, já estavam completamente baralhadas com os meandros da questão e fortemente divididas quanto às implicações e conclusões do dossier Freeport.


A primeira questão que se poderia levantar seria o envio da carta rogatória pelas vias burocráticas, como se se tratasse de uma mera diligência envolvendo cidadãos comuns. Parece estranho que as autoridades inglesas enviem semelhante bomba para Portugal sem prévias consultas diplomáticas entre governos, ou pelo menos sem um aviso do governo britânico ao português. Poderá ser atribuído, talvez, à desejável independência dos poderes (judicial e executivo) que supostamente existe nos dois países. Não nos vamos ater nisso.


A segunda questão é o facto de as autoridades inglesas terem ignorado completamente uma carta rogatória semelhante enviada pelos portugueses há cerca de quatro anos (ou três, ou cinco, tanto faz) e mandarem agora a sua, como se não houvesse precedentes. Também não vamos considerar esse assunto.


O que nos interessa são os acontecimentos desencadeados por esta última rogatória (da lá para cá).


Uma investigação é um processo lento e complicado, que envolve avanços e recuos, becos sem saída e probabilidades difíceis de validar. Muito provavelmente passa por várias mudanças de direcção, conforme as hipóteses se confirmam ou não confirmam e as suspeitas se tornam certezas ou ficam mais incertas. Acrescentando a este quadro a burocracia incontornável — autorizações judiciais para buscas, procura das pessoas a ser ouvidas, escrevinhação de relatórios, etc. — é impossível que uma investigação corra célere, ao ritmo de um filme de hora e meia. É um processo muito pouco entusiasmante, que requer paciência e dedicação, cheio de armadilhas. “O Caso Ipcress” e não “Live or let die”.


Do ponto de vista mediático, uma investigação é uma chatice.


A única maneira de a tornar interessante é, evidentemente, transformá-la no thriller que ela não pode ser. Pegar em qualquer suspeita, na hipótese mais remota, na direcção mais absurda, e colori-la com imagens intrigantes e afirmações surpreendentes.


Como os órgãos oficiais (polícias e ministério público) em princípio não revelam as suas diligências, a solução é a comunicação social fazer diligências paralelas. Ou seja, investigar ao mesmo tempo, tornando públicos todos os tais avanços e recuos, hipóteses e suspeitas, dando suspense à rotina.


Por exemplo: “Estamos aqui em frente da porta do prédio onde era a firma Neurónio Criativo... Os vizinhos não se lembram de ver ninguém neste escritório... A firma terá existido apenas durante dez meses!” Ou seja, uma tentativa falhada, a ida a um escritório que se suspeita que eventualmente terá podido ter alguma coisa a ver com uma probabilidade não confirmada, transforma-se numa peça noticiosa cheia de suspense, altamente reveladora não se sabe bem de quê — mas que só pode ser de alguma coisa suspeita.


Até mesmo as não-notícias se tornam notícias: “O que acha o Sr. Presidente deste caso?” “Não comento.” A entrevistadora vira-se para a câmara com um ar aflito: “O Sr. Presidente não quer comentar o caso...” Oh diabo! A coisa deve ser séria, se ele nem sequer quer comentar.


E mesmo na falta da não-notícia, pode-se sempre criar a notícia hipotética. A SIC, ao comentar uma reunião que terá ocorrido entre cinco envolvidos, mas não se sabe se ocorreu, fez uma infografia com uma mesa redonda e cinco bonecos sentados à volta, cada um com a sua etiqueta a dizer o seu nome.


Mas o grande furo é quando se apanha algum dos “suspeitos”, pessoas pouco habituadas a aparecer em público e que não conhecem os truques de uma boa imagem. Qualquer titubeação a uma pergunta inconveniente tem um aspecto terrível. Parecem logo culpados, ou pelo menos muito suspeitos. Se fossem inocentes não estavam ali a passar por aquilo, não é verdade?


Até mesmo quem tem larga experiência nestas armadilhas cai na esparrela. Por exemplo: o PR estava a assistir a um torneio de golfe. Lá veio a pergunta sobre o que achava da “situação” do PM. Cavaco olhou para a jornalista e disse: “Estou aqui a ver golfe... (a pensar) Não é altura para falar de assuntos... (hesitou) ... de Estado.” Conclusão: o PR acha que o caso Freeport é um assunto de Estado. Ora, não foi isso que ele quis dizer. É obvio que queria dizer “assuntos políticos, fora do foro do acontecimento, que envolvem responsabilidade institucional”. Numa palavra rápida, apanhado à má fila, recorreu a “ Estado”.


Não havendo nem notícia, nem não-notícia, nem entrevista ou não-entrevista, nem sequer notícias hipotéticas, há ainda a especulação e os comentadores. Mesas redondas, debates e frentes-a-frente sobre o que pode ser, o que pode querer dizer, que atitudes os intervenientes tomaram e quais deveriam ter tomado.


Mas não é só a televisão, com a sua voragem de notícias de hora a hora, que vai por estes caminhos. A imprensa escrita também faz o que pode. Por exemplo: “A mãe de Sócrates comprou um apartamento a uma offhsore e não recorreu ao crédito!” Aqui há gato, só pode haver. Não interessa o facto de o edifício ter sido, todo ele, comercializado por uma offshore — portanto todas as pessoas compraram a essa empresa. Também não se considera a  hipótese da senhora poder ter poupanças ou bens próprios e portanto não precisar de pedir emprestado.


É claro que a postura da comunicação social tem sido criticada — não só pelos visados, muito justamente, mas também por figuras públicas e até anónimos cidadãos, que se espantam com este assassinato do bom nome de uma pessoa em tempo real. Qual é a reacção? Transformar as críticas em notícias: “Tem sido muito criticado este julgamento em praça pública de pessoas que, até prova em contrário, são inocentes”. Ora toma lá.


“O senhor acha que tem havido exagero na forma como o caso está a ser noticiado?” e segue-se meia hora de exagero. Nem mais.


The show must go on!


publicado por Perplexo às 22:11
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