Pois é, saiu a edição portuguesa da revista Playboy. Cinquenta e cinco anos depois de aparecer nos Estados Unidos, trinta e cinco depois de ser possível em Portugal. Numa altura em que as revistas lutam desesperadamente para não desaparecer, sobrepujadas por uma conjuntura económica desfavorável e mudanças inexoráveis nos hábitos dos leitores. Nesta conjuntura, propõe-se vender 80 mil exemplares, uma tiragem de topo para a média nacional. (A Maxmen e a FHM, com tiragens descendentes, declararam 48 mil e 60 mil no último trimestre de 2008).
Grande “aposta”, portanto. Uma empresa americana (Fresta Corporation), com interesses dos mais variados (tecnologias, cuidados de saúde, investimentos e têxteis), comprou os direitos da quase defunta Playboy americana e decidiu gastar uns milhões de euros nesta aventura.
Porquê, é impossível saber, ou mesmo especular. Ganhar dinheiro — a motivação mais evidente — não será com certeza. Alguma paixão do Sr. Hugo Fresta por este país, acompanhada por um desprendimento estranho pelo seu rico dinheirinho... Não faz sentido mas dinheiro é dele, gasta-o como quiser.
Mas podemos pensar se vale a pena.
Ou seja, se a Playboy traz algo que não tenhamos e que precisemos — ao ponto de pagarmos 3,95€ por mês, quando as revistas já andam perto dos 2€ e praticamente todos os conteúdos estão disponíveis de borla na Internet.
Para sabermos se vale a pena, temos duas abordagens possíveis: primeiro, ver qual é o valor intrínseco do conceito Playboy; segundo considerar o valor específico desta edição nacional.
Quando apareceu nos Estados Unidos, em 1953, a Playboy representou não só um conceito novo de revista como também uma abordagem nova do sexo e do comportamento. A sua “filosofia”, como Hefner lhe chamou logo à partida, foi uma autêntica pedrada no charco: basicamente, que o sexo é uma actividade natural própria de pessoas normais, que o consumo é moralmente correcto e que todas as ideias (políticas, culturais) podem e devem ser discutidas. Ao longo de uma batalha dura com a censura oficial e os preconceitos calvinistas do país, a Playboy ganhou estatuto, e não só como uma revista de gajas nuas: juntamente com a Esquire e a New Yorker, lutou por todas as causas por que valia a pena lutar (contra a Guerra do Vietname, por exemplo), mostrou o pensamento dos melhores intelectuais, exibiu ficção dos mais notáveis escritores e apresentou a arte dos mais arrojados criadores. Teatro, cinema, humor, ideias, tendências, modas e contra-modas — tudo passou pelas suas páginas, no meio das tais gajas nuas, que cada vez pareciam menos gajas e menos nuas.
Depois, e como todos os revolucionários, a Playboy foi vítima da sua revolução. A liberalização de costumes que tanto tinha defendido ultrapassou-a e acabou por fazê-la parecer careta, parva, fora de foco. As discussões que provocara estavam resolvidas. Passou ao edonismo puro e simples, sem uma causa que o desculpasse.
Resumindo, envelheceu com os seus leitores e perdeu a graça. Apareceram outras revistas mais ousadas, mais cultas e mais contemporâneas. As suas mulheres, pintadas e retocadas, ficaram provincianas, artificiais e, mais uma vez, gajas. As causas que defendeu, ganhas ou perdidas, passaram para outros fóruns.
A chegada da Internet foi apenas o toque final na debacle. De uma tiragem de milhões, passou para as poucas centenas de milhares. Os clubes fecharam, as franchises secaram. A marca, pirateada e ridicularizada, perdeu o significado.
Como fenómeno, e mesmo como negócio, a Playboy acabou.
Mas, se a Playboy americana não se modernizou, nada impediria que o conceito fosse adaptado aos nossos tempos noutra Playboy qualquer. Seria possível usar a marca para lançar uma revista mais consonante com a actualidade — com o humor da Wallpaper, o glamour da Vanity Fair e a atitude da Monocle, por exemplo. Até poderia ter mulheres nuas, mas mulheres de hoje, que têm outra atitude quando se despem e se despem noutras circunstâncias.
Nada disso.
A Playboy portuguesa é apenas e simplesmente uma cópia tuga da Playboy americana dos anos 1950. Até em Portugal já se fizeram revistas mais contemporâneas e interessantes, com marcas da casa. Assim de repente, e sem pensar muito, a Kapa, a DNA e a Ícon, por exemplo.
Mesmo dentro do conceito da época de ouro da Playboy — a década de 1960 — é uma revista muito fraquinha. Falta-lhe conteúdo e, sobretudo, falta-lhe atitude.
Por exemplo, as entrevistas Playboy. Na americana, algumas ficaram famosas pelos entrevistados, que incluíram centenas de figuras públicas, formadores de opinião, inovadores e agitadores. Todas elas eram feitas segundo uma técnica particular: dezenas de horas de gravação, ao longo de várias sessões, em que se falava de tudo, para além da especialidade do entrevistado: religião, política, sexo, valores, gostos. As entrevistas da Playboy, editadas depois em vários livros, são um resumo do pensamento da época e uma lista de pessoas de todos os quadrantes, todas elas com algo a dizer.
Quem é que a edição tuga escolheu? Um político, filósofo, opinion-maker, provocador? Não, escolheu o jogador de futebol Costinha, que pode ser uma pessoa estimável, mas cuja carreira que vai do madeirense Machico ao Atalanta de Bérgamo. Em 41 perguntas, nove são do teor “Qual é o seu costureiro preferido?”, ou “Gostou de privar com a realeza monegasca?” e as restantes 32 falam de futebol. Ficamos com opiniões como “Para mim, o Pinto da Costa é um senhor... Faz aquilo que qualquer presidente tem de fazer por um clube...”
Melhor é a entrevista a Pacman, dos da Weasel — superficial, mas pelo menos fala de tudo um pouco e esclarece alguma coisa. Como ele diz, “um gajo fica um bocado burro com a bola”.
Depois há um artigo do patrão, Hugo Fresta, sobre “como enriquecer durante a crise” — isto de um homem que, pelos vistos, está decidido a perder dinheiro...
Ainda nas peças “pesadas” temos uma relato da tráfego de droga na Guiné, coisa sabida e já publicada em toda a parte.
Pedro Paixão e Nuno Markl emprestam duas páginas de crónica e Nuno Saraiva duas páginas de BD. Fora isso, as sessões habituais: viagens, produtos de consumo, anedotas e consultório sentimental.
Desta vez vai ser difícil dizer que se compra a Playboy pelos textos e não pelas gajas.
Ah, sim, as gajas. São uma questão de gosto, pode-se sempre dizer bem ou mal. Rute Penedo, a centerfold, é uma “artista plástica” — ficamos a saber que frequentou Artes Plásticas em Évora, daí o título desta guia turística em Ubatuba e modelo, amante da natureza e do body-board. A da capa, Mónica Sofia, participou na “Quinta das Celebridades” e na banda “Delirium”. Há outras, inclusive páginas de repescagem das Playboy históricas — que estão todas disponíveis na Internet, textos e imagens.
Aliás, as fotografias não são grande coisa e a impressão é francamente má. Para não falar na direcção de arte, antiquada e pouco imaginativa. E não é que falte que faça bem cá na terrinha; olhe-se, por exemplo, a série de revistas Blue.
No editorial, o director fala do “produto” e usa cinco vezes a palavra “marca”.
O que nos leva a reformular a questão inicial: este produto está de acordo com o prestígio da marca? Traz alguma coisa de que precisemos?
A resposta, infelizmente, é não. Mais uma oportunidade perdida. Se é que chegou a existir.