Tal como o casamento de pessoas do mesmo sexo ou a situação na Palestina, o Wikileaks parece ser uma daquelas questões fracturantes que dividem a esquerda e a direita a preto e branco, sem considerar aquela zona cinzenta onde todos os gatos são pardos.
Basicamente, e para resumir resmas de considerações, há quem ache que os segredos de Estado devem ser isso mesmo, segredos, enquanto outros afirmam que o establishment está pura e simplesmente a censurar livre informação. (Estranhei ver a Clara Ferreira Alves, que tenho em excelente conta, alinhar pela segunda tese.)
À partida, a ideia de um site que denuncie as maldades do sistema é uma boa ideia. Corrupção e negociatas que diminuem o princípio da igualdade e transparência democráticas devem ser expostas, e quanto mais expostas mais forçam os prevaricadores a não prevaricar e possibilitam às autoridades castigá-los. Os resultados não são tão bons como gostaríamos, mas é mais uma ajuda para os valores da boa governação.
Essa é a ideia, mas as informações do Wikileaks não se têm dirigido sempre e especificamente para esta área. Até à data podem ser divididas em três blocos, com um quarto prometido para breve, e não são nem pouco mais ou menos iguais – na área a que se dedicam, nas “revelações” que fazem e nos resultados que provocam.
O primeiro bloco referia-se a corrupções de vária ordem, especificamente em países africanos a nadar em petróleo, e só pode ser considerado um serviço público à escala mundial.
Já o segundo bloco, sobre as violências e prepotências cometidas pelos soldados americanos no Iraque e no Afeganistão, é um ataque aberto aos Estados Unidos e um autêntico libelo de propaganda pró islâmica. Em todas as guerras os lados em conflito acusaram o outro lado de proceder assim, também com provas. Isto é possível porque todos cometem atrocidades – está no código genético da guerra e no campo de batalha as violências desnecessárias são inevitáveis. Ao divulgar as barbaridades dos americanos sem falar sequer das violências cometidas pelos fundamentalistas islâmicos (muitas vezes contra os seus próprios) o Wikileaks está a usar a tal transparência a favor de apenas um dos lados da trincheira e coloca em perigo os soldados do lado americano (que no Afeganistão também é o nosso lado, lembram-se?) e não só os soldados propriamente, também os civis das diversas organizações que prestam assistência aos afegãos. Além de fornecer dados preciosos para a propaganda do inimigo. Não se vê que isto tenha a ver ou contribua para a transparência democrática nos nossos países.
E este pormenor da existência de lados opostos não pode ser minimizado: o lado dos americanos também é o nosso, quer concordemos com a presença no Afeganistão e no Iraque ou não. Por muito desastrados, ou prepotentes, ou ambas as coisas que eles sejam, não estão apenas a defender interesses petrolíferos ou imperiais; estão também a defender uma qualidade de vida e uma cultura que é comum ao chamado “mundo ocidental” e que inclui, entre muitas outras coisas, a livre circulação de informação na Internet.
O último bloco publicado é o tal dos 250 mil emails de correspondência diplomática. Não revelam nada de novo, apenas confirmam coisas que toda a gente sabe (que Berlusconi é mulherengo, por exemplo) e representam um enorme embaraço para o pessoal diplomático – não pelo que dizem, que é natural que digam, mas pela sua publicação. Porque não hão-de os diplomatas dizer o que lhes parece nas suas comunicações confidenciais aos ministérios? Em que sentido é que essas opiniões, do Governo de um país sobre os Governos dos outros países, significam uma falta de transparência para os governados? Não se percebe.
Quando ao bloco prometido, sobre corrupção e más práticas das instituições financeiras, será também um serviço público, embora, e muito provavelmente, não contenha também nada que não se tenha dito até à exaustão na imprensa.
Quanto à questão da liberdade de informação, não nos parece que haja dúvidas; democracia e transparência não são a mesma coisa. Mesmo a democracia mais transparente tem de ter segredos de Estado e correspondência privada. O que está em questão não é a liberdade dos cidadãos perante os seus Governos, é a possibilidade desses Governos defenderem os interesses dos cidadãos, para o que precisam de confidencialidade. Saber que um diplomata escreveu sobre o mau carácter de Putin ao seu superior não adianta nada em termos de democracia e liberdade; apenas complica as já complicadas relações entre os países. Em última análise, ao desacreditar esses funcionários e os levar a uma maior contenção nas mensagens, prejudica o seu trabalho de análise e diminui a eficiência dos governos, o que nos prejudica a todos.
Finalmente, há a questão ética se se deve ou não divulgar informações confidenciais. No caso de Bradley Manning, o soldado que passou os emails a Assange, é traição pura e simples. Ele fez um juramento e traiu-o ao divulgar informações secretas do seu país. Não lhe competia a ele nem tinha conhecimentos ou estatuto para decidir se essas informações deviam ou não deviam ser secretas. Por muito menos se fuzilaram soldados na Segunda Guerra Mundial, e nunca ninguém criticou tais actos. O inimigo agora não são os nazis, são os fundamentalistas islâmicos, é apenas essa a diferença.
No caso de Assange, que não fez nenhum juramento, talvez não se possa falar de traição, mas pode afirmar-se que fez uma péssima avaliação das consequências das postagens no Wikileaks. Se o que ele pretende, como diz, é uma maior transparência, a consequência só pode ser exactamente o oposto, menos transparência. A partir de agora os serviços diplomáticos e os militares vão redobrar a segurança das suas comunicações. Não se soube nada de novo, apenas se desacreditou um pouco mais estruturas de que precisamos para manter a nossa qualidade de vida.
Assange deveria ser julgado, mas não pelas “violações” sexuais – uma desculpa realmente ridícula, que mostra como é difícil nas nossas estruturas jurídicas julgar alguém por aquilo que fez e fácil julgá-la pelo que não fez. Deveria ser julgado por divulgar informações secretas, coisa que um cidadão não tem o direito de fazer, concorde com elas ou não. Se fosse num daqueles países que Assange está a favorecer tremendamente ao publicar os leaks, liquidavam-no num ápice sem nenhumas preocupações legais.
Então e as “revelações” referentes a Portugal? Também aqui, nada de novo ou de surpreendente. Sempre foi evidente que o Governo Português sabia dos voos da CIA e que os tinha autorizado – no que fez muito bem, achamos nós. Teve que o negar, isso com certeza, como qualquer Governo faria. Seria de esperar o quê? Que o admitisse? Não sejamos ingénuos. Todos os governos precisam de fazer coisas inconfessáveis e de negar que as fizeram. É assim que se fazem os “negócios” entre países – sempre foi e sempre será. A ética de um Governo, no que toca à arena internacional, é o interesse do país. É no interesse de Portugal que o seu Governo tenha boas relações com os Estados Unidos e lhe faça alguns favores. Neste caso dos voos da CIA, são favores que também nos favorecem a nós, na medida em que também não nos interessa que os fundamentalistas islâmicos levem a melhor. Temos até de agradecer aos americanos fazer o trabalho sujo que nos serve, podendo nós ficar com a dignidade de não o ter feito.
Quanto à questão da CGD ter proposto aos americanos espiar o Irão, faz todo o sentido. Ou alguém acha que o Irão, que apedreja mulheres adúlteras e liquida opositores nas eleições, não é um inimigo dos nossos valores?
Já é tempo dos auto-proclamados defensores da correcção democrática tomar conhecimento de que a Guerra Fria acabou e perceber onde está agora o inimigo. Como diria o genial Lenine, se fosse vivo: “O anti-americanismo, doença infantil do esquerdismo”.