Parece que o destino da RTP está traçado, mas o público ainda não sabe qual será. Mas também já não se lembra como foi o longo caminho e as muitas indefinições que fizeram da RTP o que ela é.
Percurso longo de mais para contar aqui – os textos querem-se curtos, senão ninguém os lê. Mas desde o momento em que foram concessionados canais privados – a SIC, em 1992, a TVI, em 93 e o Cabo em 94 – que se levantou a questão de o Estado ser proprietário de canais, e em que termos.
Sim, o serviço público. Sempre foi invocado para justificar a propriedade estatal. Está na Constituição, no Artigo 38º: “5. O Estado assegura a existência e o funcionamento de um serviço público de rádio e de televisão.” E o artigo seguinte fala de imparcialidade e isenção, o que tem sido invocado pelos adversários do serviço público, pois a tutela do Governo, único accionista, impede que a RTP critique o Governo, dizem eles. (Sendo “eles” o partido que estiver na oposição.)
O que é serviço público nunca foi definido – precisamente, está a funcionar neste momento uma Comissão especial, liderada por João Duque, que tem 60 dias para o definir.
Toda a gente tem uma ideia do que seja serviço público televisivo: cultura e informação. Mas os canais privados também têm cultura e informação. Todavia, tirando a RTP2, que apresenta uma programação mais sofisticada e uma audiência mínima, todos os canais, públicos e privados, têm um mix quase idêntico de cultura e informação.
Pois, mas o Big Brother não é cultura, pelo menos no sentido em que “As Pupilas do Sr. Reitor” são.
Ah não? E quem define o que é cultura? As Pupilas, tirando o facto de ser um livro histórico, isto é, que ficou para a História porque fez muito sucesso na época e definiu o romantismo mais piegas, é uma historiazinha de amorzinhos caçarácacá entre parolos. O Big Brother também é histórico porque mobilizou o pais inteiro, definiu o voyeurismo mais básico e são historiazinhas de sexo entre suburbanos.
De facto, toda a gente tem uma ideia do que é cultura, mas é difícil defini-la em termos de conteúdos. A não ser que se vá pelo grau de chateação que provoca na audiência, reduzindo-a. Mas a cultura não deve ser, por definição, abrangente a toda, ou quase toda a população? Se não for não tem valor cultural, é uma elucubração para intelectuais.
É melhor aguardarmos a definição da Comissão para discutir este assunto – porque será discutido até à exaustão, disso ninguém tenha dúvidas.
Contudo, não é só a questão do papel cultural da televisão pública que levanta problemas. Também há a questão do custo e da forma de o cobrir. As televisões privadas pagam-se – e dão lucro – com a publicidade. A televisão pública, sendo paga pelo contribuinte que colhe os benefícios da cultura e da informação, não devia ter publicidade. (Casos da TV Cultura brasileira e da PBS norte-americana.) Mas aí o custo para o contribuinte fica incomportável, porque fazer tv é caro. Basta considerar este valor: COM publicidade, a RTP tem um passivo de 530 milhões de euros. (Os motivos têm a ver com as ineficiências e protecções da função pública. Ninguém é despedido da RTP, apenas colocado na gaveta.)
Então, deixa-se ficar a publicidade.
O que levanta imediatamente dois problemas. Primeiro, o contribuinte paga e ainda tem de ver anúncios. Segundo, as televisões privadas têm de concorrer no mercado publicitário com um canal subsidiado pelo Estado.
Por causa de todas estas questões – e da cobardia política de as enfrentar – a situação tem-se arrastado assim. Correm rios de tinta (hoje deveria dizer-se, milhões de megabites) sobre o assunto, e mantém-se o formato de uma televisão pública com publicidade e subsidiada pelo Estado.
Também há a questão política: qual é o Governo que não quer ter um canal às ordens da sua propaganda? No entanto contra essa manipulação têm lutado várias gerações de jornalistas na RTP (enfim, uns mais do que outros) e não é tão claro que o canal esteja sempre a ajoelhar perante as exigências do executivo. O mesmo perigo existe para os outros canais, igualmente sujeitos a pressões. Cremos que a questão política, embora real, não tem sido o parâmetro mais importante para a procrastinação em relação ao figurino da RTP.
Para já, e até à definição definitiva, o Governo corta nas despesas da RTP (e da RDP). Que é o mesmo que dizer, diminui a sua eficiência e qualidade. Deixa de haver programação própria nas ilhas (apenas recolha de noticiário), e as emissões locais reduzem-se a quatro horas diárias. As delegações regionais no Continente também sofrem cortes. Tem de ser; como Relvas salientou, o escritório do Algarve não pode custar um milhão de euros por ano, podendo uma equipa de gravação descer ao Algarve em duas horas, o mesmo tempo que se leva de Vila Real de Santo António a Sagres.
Aliás, temos o exemplo das privadas, que dão lucro. Não se pode dizer que a RTP dá prejuízo por causa da culturalidade dos seus conteúdos. Os shares das três generalistas andam muito próximos. A TVI tem mantido a liderança nos últimos anos, mas as percentagens que determinam o custo da publicidade estão bastante próximas.
Uma decisão anunciada por Relvas parece correcta: criar uma RTP Internacional com conteúdos de todos os canais (inclusive os privados), a pensar nos emigrantes. Acabar com as emissões da RDP em onda curta para o estrangeiro, que ninguém ouve, também.
Questões difíceis de resolver. Entretanto o dinheiro continua a correr. E depois há sempre aquela sensação horrível de que, quando chegar a altura de decidir, quem lá estiver poderá não decidir bem.