No seu programa “Controversos” (e nos anteriores, “Mulheres da Minha Vida” e “De Homem Para Homem”) Manuel Luís Goucha tem entrevistado pessoas estimáveis que já foram entrevistadas até à exaustão e que, por mais interessantes que seja, não têm nada de novo a dizer. Ele, por sua vez, adopta uma atitude de veneração e deslumbre que em nada ajuda a tirar-lhes alguma coisa de menos ortodoxo e portanto mais interessante.
Mas desta vez o Goucha foi desenterrar uma figura sui generis que, embora goste muito de aparecer, há muito tempo que não aparece: o pároco da Lixa, Mário de Oliveira. E o pároco da Lixa quando abre a boca não pára de falar.
O que Oliveira mais gosta é de chocar as hostes. É um padre que vai contra todos os cânones da Igreja e tem teorias do arco da velha para justificar as suas afirmações. Um exemplo: Maria, se o filho não era de José, é porque provavelmente foi violada. Não o enganou com outro, foi violada, e depois teve de mentir ao marido.
Num lado mais prático, Oliveira diz que Fátima é uma fraude, e até escreveu um livro sobre isso.
É um (bom) sinal dos tempos que qualquer pessoa, e ainda mais um ex-padre, possa dizer o que quiser. Desde que o catolicismo se tornou a religião oficial de Roma, em 380AD, até à Revolução Francesa, pelo menos, um europeu só podia ser católico apostólico romano. Durante mil e quatrocentos anos, quem não fosse, ou mostrasse o mínimo indício de que punha algum cânone em dúvida, arriscava-se a ser barbaramente torturado e eventualmente queimado vivo, ou encarcerado para o resto da vida. As inúmeras cisões que houve dentro da Igreja apenas serviram para massacrar dezenas de milhares de incautos apanhados no meio das disputas de bispos e reis.
Não era assim no Império Romano, onde todas as religiões eram aceites e conviviam com alguns atritos, mas conviviam. Nenhuma era perseguida – a não ser as muito aberrantes, e os Cristãos foram considerados aberrantes porque a sua doutrina era verdadeiramente revolucionária. Não só tinham um deus pobre, que morrera na cruz, como advogavam a igualdade de classes e de sexos, o perdão dos inimigos e muitas outras novidades que hoje consideramos como conquistas da humanidade.
Mas o facto é que essa doutrina revolucionária e humanista dos cristãos começou deteriorar-se assim que chegaram ao poder. Aboliram a igualdade entre os sexos, mantiveram e até consolidaram a desigualdade social e perseguiram violentamente todas as religiões e ideias que pusessem os seus princípios em questão. Sabendo que o Conhecimento é a chave do Poder, preservaram os conhecimentos antigos que lhes interessavam e fizeram desaparecer todos os outros.
Foi preciso a Revolução Francesa e muitas outras revoluções que se lhe seguiram, e ainda a inexorável divulgação dos progressos científicos para que finalmente a Igreja, enfraquecida, tivesse que abdicar de impor as suas ideias pela força. Hoje em dia, numa Europa muito laicizada, segue uma linha cordial de compreensão, não vá perder ainda mais fieis.
Mas voltemos ao pároco da Lixa. No programa do Goucha, disse numa hora mais blasfémias do que qualquer ateu se dá ao trabalho de dizer num ano. Não há dogma que não deite abaixo, que não explique ao contrario da doutrina oficial.
Tem razão?
Terá para os ateus, agnósticos e anti-católicos. Mas ele não é ateu. Apresenta-se como um padre da Santa Madre Igreja (o posto de pároco, perdeu-o em 1974, ao sair da prisão). Não pode renegar os dogmas e ser padre, ou mesmo cristão.
Não faz sentido uma pessoa pertencer a uma organização em cujos princípios não acredita. Um conservador a militar no BE. Um benfiquista, sócio do Sporting. Se é contra, saia. Se não acredita, que mude de credo.
Goucha nem abria a boca, siderado com a quantidade de obscenidades que ouvia. E Mário de Oliveira, com um palco só para si, não se calava.
Digo-lhes uma coisa: pior do que um padre ortodoxo, só um padre do reviralho.